Cães de guarda

Cães de GuardaNo auge da ditadura militar, aprendi uma lição que haveria de se me tornar baliza de vida. As então chamadas “forças vivas” de minha cidade — com as ditas “autoridades civis, militares e religiosas” — queriam o silêncio de meu jornal diante das violências militares. No encontro, um bispo católico — e eu era um jovem comunista que se dizia ateu — pediu a palavra, falou: “Jornalistas devem ser como os cães bíblicos, que latem em defesa das famílias, advertindo-as de perigos, de assaltos, de ladrões. Ai do cão de guarda que não late”.

Nunca mais parei de rosnar, de latir, de ladrar, de ganir, de uivar. Tentei dar-me, agora, o direito ao silêncio de cão cansado. Mas o coração me ordena continuar ganindo, pois a farsa coletiva foi longe demais, a conivência dos que dizem não saber, não ver, não enxergar, não ouvir. O barco faz água, o naufrágio é inevitável. Salvar-se-ão os que tiverem boias para se agarrar, tábuas de salvação. E, acima de tudo, que desejarem lutar pela vida e pelos valores da existência, que não são individuais.

É preciso ganir diante da cantilena sem fim dos que falam em direitos sem deveres, em direitos sem responsabilidades. E ganir diante da mentira de se pregar e anunciar, gostosamente, um alienado direito à vida. Vida não é um direito, mas dom, graça, dádiva, concessão, dote. Apenas depois de recebê-la como herança, passa, então, a existir o direito de viver. Tudo o que recebeu vida tem o direito de viver. Mas merecer a vida e vivê-la exigem correspondência, implicando deveres, compromissos, responsabilidade. Viver é estar diante de condições, de regras, de leis, de ritos, de ordem. Até o Paraíso teve regras. Quem a desobedeceu foi expulso. Vida, pois, é graça. Mas, para se ter o direito de vivê-la, há que se ter responsabilidade diante dela e honrar o compartilhamento universal nela implícito.

Crianças e adolescentes têm um único e formidável direito: o de serem cuidados, de serem tutelados, pois não podem responder por si mesmos. Se exigirmos deles responsabilidades de adultos, devemos tratá-los como adultos. O direito dos menores e pequeninos é o de serem protegidos pela família, pela comunidade, pelo Estado. É o direito à dignidade humana, que se inicia com educação, segurança, alimentação, saúde, valores espirituais. A vida é gratuita, mas viver tem um custo. Alguém civilmente irresponsável não pode ter direitos civis, além dos da tutela. E quem é sujeito de direitos não pode viver na irresponsabilidade civil.

A grande discussão não deveria estar em torno de idade de responsabilização penal. Precisaríamos, talvez, definir o que, hoje, é a maturidade de uma pessoa humana, quando ela se inicia. Como fazê-lo, se revelamos ter perdido a consciência histórica, lições da caminhada humana? Desde as mais primitivas culturas e civilizações, sabia-se da fragilidade infantil, da adolescência insegura. Ao longo da história, criaram-se admiráveis ritos de iniciação, de passagem, que têm — citando apenas um referencial — exemplo comovente no bar mitzvás judeu. Ao completar 13 anos e mais um dia, o menino é considerado adulto responsável para fins religiosos. É seu ingresso no mistério, sua responsabilidade social. E era esse o significado, também, do Crisma, sacramento da Igreja Católica. O menino, “soldado da fé”, fazia a passagem para o mundo adulto. E o que eram os “bailes das debutantes”, as meninas de 15 anos? A sexualidade marca essa transição.

Ora, quando permitimos que adolescentes já exercitem a vida sexual, não há mais que sejam infantes ou adultos. Permitindo, demos-lhes o diploma de maioridade. Pois nada existe na vida humana mais misterioso, profundo e desafiador do que a descoberta da sexualidade, o encontro homem-mulher. É o bíblico “conhecer homem”, “conhecer mulher”. Os franceses têm um notável jogo de palavras para o verbo conhecer: connaître (conhecer) e co-naître (nascer com). Quando conhecemos, nascemos com. Quando homem conhece mulher, quando mulher conhece homem, eles conhecem a vida. Nascem com. E tornam-se adultos, perdendo a inocência, a in-ciência, o não saber. Como Eva e Adão, comendo o fruto do conhecimento, a perda da in-ciência é a descoberta da ciência, o surgimento da consciência, esse co-naître, conhecer e nascer.

Mas, com nossas crianças e adolescentes, brincamos de seriedade. Pois falamos de inocência e de imaturidade no intervalo da orgia sexual que criamos. Estamos mentindo para quem? Ora, meninos que fazem meninos matam meninos. Se gerar filho é tão simples, por que seria mais complicado matar? Gani.

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