Casa Grande & Senzala

Casa GrandeEssa campanha de ódios, de rancores e de virulências que se espalha pelo Brasil só teve paralelo, penso eu, quando do sórdido movimento que levou Getúlio Vargas ao suicídio. A velha UDN semeou e plantou tantos venenos, horrores, cóleras e fúria que o país se dividiu, os paulistas revelando sua sanha aristocrática como se o restante do Brasil fosse uma terra a ser colonizada. A voz de Carlos Lacerda, furibunda e venenosa, atiçou e assanhou todos os apetites, provocando reações explosivas. Era a Lei de Newton em ação na política: a ação dos aristocratas provocando a reação dos oprimidos; a burguesia de um lado, o povo de outro. Vimos, então, o confronto entre a Casa Grande e a Senzala. O sangue de Getúlio Vargas uniu o povo, fez Lacerda correr, assustou a UDN e a Senzala ganhou.

Eu era adolescente, naquele 1954 sangrento. Nos colégios também aconteciam mobilizações, num processo de politização saudável e fértil. A democracia era verdadeira, com menos sordidez do que agora. Os jovens tinham pelo quê lutar, com sonhos e posicionamentos apaixonados. Éramos, estudantes, também uma elite, pois, no Brasil daquele tempo, o simples fato de poder cursar o ginásio configurava pessoas de uma elite privilegiada. E, no entanto, esquerda e direita conviviam, ainda que digladiando-se. Recordo-me que meu grupo não era “getulista”, mas não suportava a UDN. Os caminhos abertos eram para um socialismo romântico. Quando, porém, Getúlio Vargas se suicidou, a indignação uniu a todos. São Paulo ficou sozinho ainda outra vez, insistindo nas velhas oligarquias enquanto o Brasil caminhava pelos pés de Juscelino, herdeiro político de Getúlio Vargas.

Nunca, depois do que se fez contra Getúlio Vargas, vi uma sordidez tão grande quanto na atual campanha eleitoral, na qual não há limites para calúnias, difamações e, em especial, uma repulsiva união de grupos de interesses que usam de valores e princípios para ludibriar o povo. A fúria de alguns bispos é escandalosa e, mais escandalosa ainda, chegando a ser obscena, é essa sua intromissão na política partidária. A imprensa se uniu como quem defende um bolo a ser repartido ou se prepara a fazer e a repartir novo banquete.

O Brasil reage no silêncio dos grotões e isso já aconteceu antes. É nítido o posicionamento dos povos de Norte/Nordeste, Sul/Sudeste. Essa divisão pode ser irremediável nos aspectos psicológicos, morais e culturais, com forte inflexão, portanto, na economia. São Paulo parece estar descabelando-se com a gradativa perda de poder político e econômico, a Casa Grande entrando em crise de identidade.Enquanto isso, a Senzala se solidifica, liberta-se, fortalece-se, numa pálida lembrança da luta bíblica entre Davi e Golias. Está, pois, posto o confronto: os bem-aventurados querendo massacrar os desterrados que se atrevem a erguer a cabeça.

Seja qual for o resultado, o Brasil já está dividido. E feridas, como as que se abriram, levam muito tempo para cicatrizar, se se cicatrizarem. Em 1954, o sangue de Getúlio Vargas foi uma advertência para evitar o sangue que correu dez anos depois, no golpe militar de 1964. A aristocracia fingiu não ver, pois a Casa Grande vive de sua própria moral, de sua própria lei. E nunca se aproxima da Senzala. Há sinais de uma história que insiste em se repetir, assustando os que já a viram acontecer. Quem viver verá. Bom dia.

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