Ela

Véu da Noiva

Foto: Fran Camargo (site)

Para alguns tolos, paixão é doença. No entanto, é o que de mais profundo e arrebatador pode acontecer a um ser humano. Os franceses criaram a expressão “amour-passion” para tentar explicar a emoção amorosa que envolve totalmente a pessoa, fazendo com que ela se torne capaz de superar todos os obstáculos – econômicos, morais, sociais – para viver a sua doce e santa loucura. Ou demoníaca.

Quando falamos de “Paixão de Cristo”, remetemo-nos ao clímax de um amor – Dele para com a humanidade – pelo qual dedicou a própria vida. Também para Ele, a paixão foi irracional, brotada do coração, do mais fundo da alma. Se Jesus pensasse racionalmente, como simples humano, talvez tivesse duvidado de seu amor, ou feito uma reavaliação de sua santa loucura. Mas foi o divino que o envolveu por completo e, no divino, a paixão fluiu, precipitou-se, escorreu. Mesmo que seja intoxicante – quase impossível de ser tratada – a paixão beira o divino.

Nada explica a paixão. Por isso, é inútil tentar o uso da razão para compreendê-la ou equacioná-la. O ideal humano está em, diante da paixão, conseguir a quase impossível tentativa de harmonizá-la com a razão. Aliás, algum dia, haveremos de entender que a razão existe apenas para ouvir e viabilizar a voz do coração. Se se usa a razão para conter o coração, a tragédia será inevitável. O grande filósofo Dewey propagava, incendiado de convicção: “Mais paixões, não menos, é a resposta.”

Ao longo da vida, tive a graça – ou o castigo? – de conhecer e viver paixões. Conheci céus e infernos, o êxtase e a dor profunda. Quase todas extinguiram-se, a vela que a tudo incendiou e, a pouco e pouco, se foi apagando. Apenas uma permaneceu cada vez mais crescente, dolorosamente crescente, paixão agônica: Piracicaba, esta terra que Deus criou num momento de inspiração especial. Em meus delírios de amor, imagino Deus usando dos mais perfeitos pincéis, das cores mais exuberantes, da mais preciosa argila, dos mais aromáticos perfumes, para dar-nos uma oportunidade de renascer. É como, em meus sonhos, eu O visse criando e dizendo: “Eis aqui. Adão e Eva perderam o Éden. Agora, eu lhes ofereço um outro, pequenino mas inimitável. Cuidem desse novo jardim, à beira do rio plantado.”

Desde a infância, acreditei nisso. E não admito  coloquem-me dúvidas a respeito. Aos céticos e insensíveis, respondo com a reflexão de Santo Agostinho: “Ninguém ama aquilo que não conhece.”  Eu amo Piracicaba por conhecê-la, por ela ter-me revelado cada pedacinho de seu corpo, cada réstia de sua alma, cada momento de sua história. Há um espírito pairando sobre nós: o espírito mágico da Noiva à espera, no alto da colina, de quem a conquiste para sempre. Sempre quis ser esse conquistador. E ainda quero. E a quero cada vez mais, mesmo vendo-a maltratada, judiada, banalizada por aventureiros medíocres que pensam poder conquistá-la com materialidades. Ela, a Noiva, quer e oferece amor. Nada além disso. Amá-la, pois, é a única possibilidade de tentar conquistá-la ou, por ela, ser agasalhado.

Outro aniversário, mais um. Dentro em breve, Ela fará 250 anos. Está com algumas rugas, estrias. Ela chora, mas não de dor ou tristeza. Chora de amor. Pois, generosa, ela vê o esvaziamento  precioso rio em que se banha, nossa pia batismal, e olha  as pedras que surgem como que pedindo socorro. A Noiva chora para nos consolar, para nos abençoar. Eu a entendo, pois a amo e, vendo-se amada, ela me conta coisas aos ouvidos. E ouço o que Ela diz: “Estou chorando de amor por vocês. Minhas lágrimas irão, a pouco e pouco, transformando-se na água que falta, na beleza que desfalece.”

Só não a ama quem não a conhece. Não, porém, o conhecimento superficial, o de andar pelas ruas, rodar por aí com automóveis. É preciso conhecê-la nos detalhes, como o amante deslumbrado conhece o corpo da mulher amada. Os franceses – sempre eles! – têm um jogo de palavras que deveria servir-nos, a nós, piracicabanos. Para eles, “connaître” (conhecer) é o mesmo que “co-naítre” (co-nascer, nascer com.)

Ninguém, pois, pode amar essa Noiva singular se não “co-nascer”, se não nascer e renascer com ela. Ser piracicabano é viver uma interminável história de amor. Bom dia.

1 comentário

  1. eduardo pacheco giannetti em 31/07/2014 às 11:19

    Cecilio muito linda essa declaração para a nossa Piracicaba!!
    Embora não tenha tido o privilégio de nascer aqui, aprendi com minha familia,os que aqui nasceram e os que aqui escolheram para viver e me proporcionaram a “co-nascer”!
    Forte abraço!

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