Êxtase e estase

ÊxtaseHá, ainda, sentimentos humanos? Tenho lá minhas dúvidas, mesmo que ainda sobrevivam alguns deles em apenas algumas pessoas. Passamos a acreditar seja, o homem, apenas animal racional, esquecidos de que o homem é, também ou especialmente, um animal reflexivo. A razão sem reflexão é semelhante a programas de computador, à robotização. Homem sem sentimentos é máquina pensante, máquina atuante, por isso mesmo passível de ser dominado, escravizado.

Ainda, porém, que em dúvida, sei que o sensível da humanidade está apenas desfalecido, camuflado, sob escombros. E ele aparece nos momentos mais imprevisíveis, quase sempre, aliás, desafiando a razão, o pragmatismo, a visão individualista de vida. O que leva um bombeiro a, sem sequer pensar em riscos ou em si próprio, a desafiar a morte para salvar um desconhecido? O ser humano tem laços indissolúveis, milenares, ancestrais, viscerais responsáveis pelo que há de nobre e digno e honrado na própria humanidade. Se uma criança vai atravessar a rua sem ver o caminhão que se aproxima, lá estará alguém, movido por uma mola interior, que se atira em sua direção para salvá-la. Ou, quando alguém se afoga, lá está um outro que, mesmo não sabendo nadar, tenta salvá-lo. O melhor do homem está na generosidade. E é esta que vem sendo paulatinamente assassinada.

A morte dos sentimentos humanos começa com a morte das palavras. Ora, a linguagem é dinâmica, mas cada palavra tem seu significado de origem, como a raiz de uma árvore. E mesmo que lhe mudem o sentido, a raiz permanece, acabando, sempre, por produzir o fruto verdadeiro. No tempo do movimento hippie, o amor se transformou em simples conjunção sexual: faça o amor, não faça a guerra. Ou seja: faça sexo. No entanto, o amor sobrevive apesar da banalização sexual, da confusão entre erotismo e pornografia, como se fosse possível confundir Eros e Tânatos.

Mas, afinal de contas, estou pretendendo o quê, com essa escrevinhação toda? Na verdade, a culpa foi da chuva que, manhã cedinho, me despertou. Ao simples barulho dela no telhado, na copa de minhas árvores e nos arbustos, aquela musicalidade há tantos meses ausente acabou por me arrebatar de tal maneira que me vi entre paralisado e maravilhado. Era como se, enfim, tivesse acontecido o milagre esperado. Pois, enfim, a chuva caía e era a velha, a milenar, a eterna bênção vinda dos céus. Levantei-me sem me dar conta do frio, fiquei na varanda vendo a chuva cair, a reação das folhas, das plantas, das flores e até dos passarinhos que voavam como que saudando o maná caído do alto.

Ora, há 25 anos, quando me despedi de O Diário, revelei o meu sonho e plano de vida: iria ser jardineiro. Por dentro e por fora. E fazer o meu jardim interior e o jardim de minha casa. Ao começar a fazê-los e ainda tentando mantê-los, descobri bênçãos e graças, e uma nova religiosidade me aconteceu: aos poucos, percebi não ter mais qualquer religião e, ao mesmo tempo, descobrir a sacralidade e amorosidade da vida.

Enfim, a chuva. E eu lá, imobilizado e deslumbrado. Foi, então, que percebi estar tomado, ao mesmo tempo, por dois sentimentos que se definem por palavras quase parecidas: eu estava estático, paralisado do torpor da contemplação, em estase; e, também, em êxtase, dominado por emoções e sentidos, como que ausente de uma realidade palpável e, ao mesmo tempo, sendo parte dela. Eu era também a chuva. Fazia parte dela. E cada gota me parecia uma lágrima de alegria e de esperança. E a água correndo pelas pedras, absorvida pela terra, a comunhão plena da água e do solo no meu jardim era a minha própria comunhão com a vida.

As palavras falam tudo, até mesmo quando parecem mostrar o contrário das coisas: êxtase não é oposição ao estase. Um homem em êxtase pode ficar estático. E conhecer a plenitude da paz. Era a chuva. O milagre acontecendo, no mundo e em mim. Voltei a acender velas. Começo a construir, espiritualmente, altar de pedras de carne, onde me consagro a um deus desconhecido. Diante da vida, não há racionalidade que resista ao maravilhamento. Se o êxtase é um sair-se de si, a estase é um permanecer nesse além. Por que não? Bom dia.

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