Guerra e paz

Guerra e pazSe me perguntarem como ir até lá, não sei. Mas fui. Levaram-me. West Point fica às margens do rio Hudson, em Nova York. O filho de minha anfitriã estava lá. O Brasil não tinha, ainda, saído da ditadura. E, por isso, West Point – como o Pentágono, a CIA, a antiga USIS, a UPI, o que estivesse ligado à Águia devorante – doía-me. Eu era mais tolo do que agora. E não entendia a força do Império. E nem a política como simples jogo de interesses. Aquela frase de um Secretário de Estado dos EUA, dirigida a Juscelino Kubitschek, continuava-me entalada na garganta: “As nações não têm amizade. Têm interesses.” Ele tinha razão. Mas eu não sabia.

West Point abalou-me. Não pela força militar, pela arquitetura admirável. Abalei-me ao sentir, como se me entrasse através da pele, um civismo indomável, a quase absurda certeza de um povo de seu destino diante do mundo, o “american way of life”. Estava lá. E, por ser paixão e questão de fé, nada, de racional, há que possa lhes dizer ao contrário, àquele povo movido por certezas de predestinações. E não sei porque, alguns anos depois, West Point me fez entender com mais nitidez a beleza amarga e o absurdo do filme, todo ele representativo, “Sociedade dos poetas mortos”. Há, nas pessoas, ideais que nem sempre são delas mesmas, mas de seus pais, heranças de família. E desgraças se repetem de geração em geração.

Naquele mesmo ano, minha filha, ainda adolescente, concluía o “high school” numa cidadezinha satélite de Nova York, Pelham. Construída no século 18, era como que uma vila, lugar encantador com apenas cinco mil moradores em meados dos 1980, formando uma comunidade diferenciada com seu padrão de vida e estilo de conviver. A angústia aumentou-me, mas diferentemente daquela que senti entre as torres de pedra de West Point. Angustiei-me ao ver que era possível, viável, exeqüível uma pequena população criar uma comunidade com recursos próprios, mantendo-se por si mesma, de maneira justa, disciplinada, como se, na capital do mundo imperialista, eles vivessem um socialismo humanista exemplar. A escola parecia uma faculdade, com um monitor para cada três alunos; o hospital, com todos os recursos. Os moradores, quase todos, trabalhavam em Nova York. Deixavam seus carros no estacionamento da pequenina estação suburbana e, de trem, chegavam, em poucos minutos, a Manhattan. De trem retornavam, ao entardecer; tomavam de seus carros, retornavam às suas casas de ruas pacatas, silenciosas, uma cidade sem muros. Era Outono e vi crianças, espontaneamente, recolhendo galhos secos das calçadas, evitando alguém escorregasse, caísse. Aos domingos, as pessoas engalanavam-se para ir às missas ou aos cultos. E, na formatura dos adolescentes, o ritual tinha mais solenidade do que, costumeiramente, vemos em universidades brasileiras. Havia orgulho, como que uma devoção cívica misturada a uma religiosidade contagiante.

Em “West Point”, preparavam os jovens para as guerras, para a segurança nacional; nas pequenas cidades, vivia-se a paz de um cotidiano feito daquilo que me angustiava e dava inveja: o respeito de uns para com os outros. O que me parecia, à distância, frieza de um povo, era civilidade. Quando voltei, cobraram-me para escrever, como jornalista, as minhas impressões. Recusei-me, nunca escrevi, tal o meu desconforto e uma aguda pontada de inveja daquela maneira de ser, de estar, de conviver. Acho que havia entendido: em “West Point”, eles preparavam-se para conquistar o mundo; nas cidadezinhas pacatas, eles impediam que o resto do mundo os atingisse.

Pensei nisso ainda ontem, numa entrevista que, ao lado de Elias Boaventura, demos à TV-Unimep. O tema: qual o destino de Piracicaba diante dessa devastação toda, obras que visam aos automóveis, expansão desordenada, um novo faroeste? A impressão de nós dois: preocupação, medo. Não temos uma força da autoridade, um “West Point” moral. E perdemos toda e qualquer forma de civilidade. Não preservamos valores e raízes de um pequeno e belo mundo. Mas permitimos esteja sendo invadido por uma desordem geral. Há nuvens negras em nossos céus. E a comunidade, passiva, não reflete e nem discute sobre essa bomba já programada para detonar. Que pena! Bom dia.

Deixe uma resposta