Hipocrisia

HipocrisiaE o pior de tudo é que a civilização estaria em escombros não fosse a hipocrisia. E a mentira. Mesmo assim, fica cada vez mais difícil aceitar continuemos vivendo num mundo em que hipocrisias e mentiras – quase que sinônimos entre si – sejam parte essencial da sobrevivência de povos, nações, pessoas. Hipocrisia é palavra que herdamos dos gregos, para quem os “hipócritas” eram os atores de teatro, usando máscaras que dissimulavam os verdadeiros rostos, da mesma forma como viviam papéis que não eram os seus, pessoais. Continuamos atores até hoje. Só que, agora e há muito tempo, o teatro é o mundo e, num fenômeno singularíssimo, os hipócritas estão tanto no palco quanto na platéia.

A civilização vive e sobrevive de suas máscaras. As pessoas, também. E, nas relações internacionais, as máscaras mais eficientes e eficazes são as da atividade em que a hipocrisia atingiu o nível de ciência: a diplomacia. Ora, as guerras acontecem quando fracassa a diplomacia. Ou seja: quando as simulações e dissimulações, acordos e negociações fracassam, as máscaras caem. E no lugar de mentiras, farsas, maneirismos, um ritual e uma liturgia plenas de hipocrisia, surge a faceta bárbara do homem e dos povos: a guerra, com seus horrores, ódios e viscerais instintos tribais. O homem da caverna mudou apenas de arma: do machado e da flecha, passou ao computador.

Quem se recorda de ter lido, na imprensa brasileira e mundial, reações tão indignadas, protestos tão constantes e persistentes em relação às ações penais cometidas pela China contra seus detentos, execuções por fuzilamento quase imediato; e contra as atrocidades dos Estados Unidos em Guantánamo; contra civis, mulheres e crianças no Afeganistão, no Iraque? Quem se recorda de protestos veementes pelo fato de, dizendo seguir a legislação do Iraque, os Estados Unidos – invasores e imperadores daquele e naquele país – terem matado na forca Sadam Hussein, com direito a televisão, ao vivo e em cores? E as penas de morte em países ditos ocidentais, cristãos, civilizados? E a situação de milhões de homens e mulheres presos, aguardando julgamento, amontoados como verdadeiros lixos humanos, que, talvez, preferissem a morte a uma tal e infamante situação de indignidade?

Por que a imprensa brasileira tem insistindo tanto em, apenas agora, revelar o passado de Dilma como combatente contra a ditadura, membro de grupos de resistência, perdoando e ignorando, porém, torturadores ainda vivos, financiadores de torturas e de tiranias? Guerrilheiros, em muitos momentos da história, foram heróis que nos salvaram da hecatombe. No panteão dos heróis universais, estão guerrilheiros e chefes de rebeliões que, em seu tempo, foram massacrados: Nelson Mandela, Charles de Gaulle, os ganhadores do Prêmio Nobel Menachem Begin e Yassar Arafat, entre tantos outros. Em que lixeira está jogado Sérgio Paranhos Fleury, herói dos comparsas da tirania? Torturador pode, torturado não pode?

É óbvio, insista-se nisso, que nos choca – na nossa hipocrisia cristã, lembrando Jesus perdoando a mulher adúltera – a perspectiva de uma adúltera e criminosa iraniana ser condenada à morte por apedrejamento. Mas eles não são cristãos e a civilização iraniana, a velha Pérsia, têm costumes, leis, ideologias e religião de quase plena oposição aos valores ocidentais que, aliás, não mais se sabe quais são, a não ser os econômicos. Mas, por questões políticas e por hipocrisia na ordem moral, imprensa e políticos se esquecem das atrocidades que são verdadeiros genocídios para dar ênfase ao protesto que é intromissão indevida na soberania de outros povos. Condena-se Cuba – pobrezinha e indefesa – por violar direitos humanos. Mas poupa-se a agora toda poderosa e pujante China diante de violações ainda mais graves que se repetem sem quaisquer protestos dos mesmos hipócritas de sempre.

Ora, a história é escrita pelos vencedores. Apenas depois de muito e muito tempo, talvez quando estes se tornarem vencidos, ela é revista. Se alemães tivessem vencido a guerra, o holocausto teria sido cometido pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagazáki, continuando no Vietnã, no Camboja, agora no Iraque e no Afeganistão. Mas vencedores julgam, não são julgados. Até que a situação se inverta. E, então, a hipocrisia universal mude de máscaras, apenas mude. Assim caminha a humanidade. E, por isso mesmo, cada vez mais afundando no lamaçal de si mesma. Bom dia.

Deixe uma resposta