Marilena

MarilenaAo saber da morte de Marilena Muller D´Arce, a minha sensação não foi apenas de perda de uma grande amiga, da companheira das grandes batalhas jornalísticas, da mulher que nunca nos faltou, a seus amigos, em momentos difíceis e agudos durante a ditadura. A sensação foi de remorso com ponta de vergonha. Pois, tendo perdido o contato com Marilena – que se mudara para Minas Gerais – desisti de procurá-la, o tempo foi passando e nunca mais soube dela. Uma única vez, num telefonema confuso, ela me telefonou, falou de coisas confusas, perdemos o contato de vez. E, apenas agora, soube que ela estava morando no Lar dos Velhinhos. A dor aumentou, com o misto de remorso e de vergonha.

A primeira vez que vi Marilena foi quando, ainda estudante na ESALQ, ela chocou a cidade ao desfilar pela rua Governador, ao lado de outros colegas, a cavalo. Ia a trote largo, cabelos ao vento, o porte esguio, sorridente e absolutamente indiferente à opinião das pessoas. Lá estava a Marilena Muller, a verdadeira, a moça de uma inteligência diferenciada, beirando à genialidade, disposta a enfrentar preconceitos, tabus, regras já esclerosadas àquele tempo. Formando-se agrônoma, foi pesquisadora e professora da ESALQ, casou-se, teve uma penca de filhos, mas seu espírito livre, aberto, inquieto, vulcânico não lhe permitiu fosse apenas rainha de seus reinos. O mundo era pequeno para Marilena. E a vida, curta demais para sua ânsia de liberdade, de buscas, para sua inquietação diante da existência. Solidária e solitária, transgressora e conservadora, comportando-se ora como dama ora com vulgaridade, Marilena foi uma feminista diferente, pois jamais perdeu sua feminilidade e nunca quis apoderar-se do terreno dos machos. Ela liderava e se impunha por uma força feminina vulcânica que lhe vinha da alma e das entranhas.

Nos mais difíceis momentos de nossas lutas em O DIÁRIO, lá estava Marilena Muller D´Arce ao lado de seus companheiros de redação, ela que nem funcionária era, mas que, como colaboradora, participava de tudo, disponível, atuante, solidária. Marilena foi como a mãe de todos naquela redação, capaz de observar os mínimos detalhes e as mínimas aflições de cada um. Sua argúcia e cultura me espantavam. De repente, diante de um texto meu, ela aparecia em minha sala e me advertia: “essa vírgula está errada.” Ou: “por que você não escolhe outra palavra para evitar cacófato?”

Certa feita, escrevi, nos meus rabiscos do óbvio e do cotidiano, que jamais vira filme ou lera livro em que qualquer personagem tivesse uma banal dor-de-barriga, descrita pelo autor ou pelo diretor. Marilena novamente veio à minha sala: “Você está enganado. O Hemingway escreveu, no romance tal, a dor-de-barriga de um personagem.” Lendo e falando diversas línguas, Marilena podia, além da pesquisadora que foi, ser tradutora, diplomata, intérprete, mulher com cultura e desembaraço fora do comum. E, no entanto, ela renunciou a tudo, incluindo marido e filhos, na sua indefinida, confusa e inesgotável ânsia de estar no mundo com total intensidade, sem regras e sem leis. Marilena Muller D´Arce foi um gênio e gênio não se explicam. Ou há quem explique Virginia Woolf, Pagu?

A casa de Marilena – onde hoje é a Casa Paroquial da Catedral de Santo Antônio, na rua Floriano ou D.Pedro, confundo-me – era o abrigo dos que precisavam se esconder da polícia, dos que não tinham onde ficar, dos poetas, boêmios, de amigos, de necessitados. Certa vez, derrotado numa eleição e estando magoado com a sua própria cidade, São Pedro, Lazinho Capellari, então prefeito de lá, afastou-se de sua terra e não tinha onde ficar. Marilena não teve dúvida: cedeu sua próxima casa para que Lazinho e dona Amália lá residissem o tempo que quisessem, admiradora que era da dignidade do ilustre e humilde Lázaro Capellari.

A trágica morte de um de seus filhos foi o golpe final na sensibilidade aguçadíssima de Marilena. Com problemas familiares, com situações afetivas mal-resolvidas, o coração materno de Marilena foi golpeado de morte. Minha mulher e eu fomos buscá-la para ela ficar conosco, em nossa casa. Ela estava destruída por dentro, na alma e no coração, enquanto o alcoolismo lhe minava o corpo aceleradamente. Naquela noite, sem palavras para consolá-la e minha mulher vivendo a dor de Marilena, não vi outra solução senão entorpecer Marilena ainda mais, entorpecê-la até a perda de consciência, pois era esta, a consciência, que a dilacerava. Mandei buscar uísque. Marilena chorava e seu olhar estava perdido no infinito. Na sala de música, coloquei Bach, baixinho. E lá fiquei com ela, a noite toda, bebendo uísque, bebendo e bebendo, até que, enfim, Marilena desmaiou. E dormiu por dois dias.

A saudade me apanhou doídamente. Com o remorso e com a vergonha de, nestes últimos anos, ter desistido de procurar por nossa velha, querida, amada e inesquecível companheira de lutas, Marilena Muller D´Arce. Dor que aumenta ao saber ter estado, ela, em seus últimos dias, aqui tão próximo, no Lar dos Velhinhos. A lágrima que me cai dos olhos talvez sirva para me redimir, regando-lhe espiritualmente o túmulo. Desculpe-me, amiga, por não ter estado a seu lado, nem eu, nem seus velhos amigos. Bom dia.

Deixe uma resposta