Meu Henrique querido

Morte e luz

A de Henrique Spavieri foi morte anunciada. Mais dramaticamente ainda, morte generosamente desejada por seus amigos, que não mais suportavam ver aquele todo e injusto sofrimento. Os últimos anos de vida de Henrique abalam crenças, convicções, credulidades. Pois foram tão amargos e doloridos, tão realmente injustos pela visão humana que – mesmo aos que têm fé – é quase impossível pensar em desígnios de Deus. Há muito, nesse sofrimento de Henrique, da purgação de Jó. Como pode alguém tão generoso, tão decente, tão bom, tão cordial ser vítima de tamanhos sofrimento e injustiça?

Sabemos, os mais próximos de Henrique – que somos muitos, desde as velhas e heróicas batalhas em O DIÁRIO –  não ter sido, ele,  levado pela enfermidade física, que o câncer não foi a causa de seu fim, mas o efeito. Henrique Spavieri começou a morrer de tristeza, de amargura, da insuportável angústia da injustiça que foi corroendo-o dia a dia. Antes de ser atingido no corpo, Henrique foi ferido na alma. Ferimento mortal. Sem piedade. Sem qualquer compaixão. O grande fotógrafo, o extraordinário profissional, o generoso homem viu sua história ser tratada como um chinelo usado e imprestável que se joga fora. Para um novo mundo de crueldades, Henrique Spavieri – uma criatura enriquecedora de todos de quem se aproximou, de tudo a que pertenceu – foi considerado apenas um objeto descartável.

Pude conversar com ele uma que outra vez, nesse seu final. Na verdade, não era conversa, mas uma troca de corações doloridos. Henrique chorava, de outro lado do telefone; minhas lágrimas, eu as engolia do meu. E compreendia – com toda lucidez e clareza – que Henrique Spavieri era, de certa forma, um filho meu, aquele que eu recebi jovenzinho em meu jornal, o caipirinha de Tietê que decidira ser mais caipira em Piracicaba. Moço bonito, inteligente, adorável, de uma inocência que lhe transparecia através dos olhos.

Foi numa longínqua manhã, n’O DIÁRIO – então, na Rua Prudente de Moraes – que tudo começou. Henrique trabalhava como ajudante de clicheria em nosso jornal, um aprendiz. Então, houve um acidente no centro da cidade e, informado do que ocorrera, chamei um dos nossos fotógrafos para reportar a ocorrência. Todos estavam ausentes. Apenas Henrique – o louro, o sorridente, o jovial Henrique – estava na redação. Imediatamente, convoquei-o para tirar fotos da ocorrência. Ele tremeu, empalideceu. Disse-me que jamais tirara fotografias, que nunca manuseara máquina fotográfica. Mesmo assim, não aceitei a desculpa. Dei-lhe a minha máquina pessoal, ensinei-o a focar e apertar o botão e animei-o: “Vire-se, rapaz. É errando que se aprende.” E Henrique lá se foi. E, ao retornar, conseguira fotos belíssimas.

A partir daquela manhã, Henrique Spavierir tornou-se, também, fotógrafo de O DIÁRIO, creio que em 1968/69. Pois, em 1970 – quando me lançaram candidato a deputado federal – Henrique ofereceu-se para ser meu cabo eleitoral em Tietê. Cedi-lhe um velho Opala e lá se foi Henrique para a estrada. Mas não retornava, demora preocupante. Então, a notícia: o carro capotara, acho que Henrique nem sequer tinha carteira de habilitação. Tímido, envergonhado, ele quis desculpar-se. Não o permiti, animando-o a continuar no trabalho: “Coisas que acontecem…” Só que, algum tempo depois, a verdade apareceu: Henrique, o molecão, não fizera campanha alguma. Ele, apaixonado, fora a Cerquilho namorar… E ele nunca soube que eu descobri.

Não sei, ninguém sabe dos desígnios de Deus. Mas a morte de Henrique – por mais doída, dolorosa e amarga nos seja, a seus familiares e amigos – foi, para ele, uma bênção dando fim a seu sofrimento incompreensível, inaceitável. Henrique morreu antes de a morte chegar. Morreu de tristeza, de amargura, de impotência diante da crueldade humana, dos que colocam interesses comerciais acima da dignidade humana. Henrique Spavieri é outra vítima imolada no altar do materialismo de um tempo sem compaixão.

Por mais aturdido esteja eu – entre o alívio pelo final de um martírio, e a tristeza de uma ausência – tenho convicção profunda, absoluta, lúcida para dizer que Henrique Spavieri foi um anjo que passou em nossas vidas.  Ele continuará vivo em suas fotos e nas lembranças amoráveis que deixa. Adeus, amigo querido, criança que tive o privilégio de fazer engatinhar desde o início. Mas dói, Henrique. Como dói! Bom dia.

12 comentários

  1. Rosangela Maria Viccino Ferreira em 10/09/2014 às 21:07

    Não poderia deixar de falar do incansável fotógrafo do Jornal de Piracicaba, nosso colega Henrique Spavieri que deu a sua vida por aquele matutito. Que fez brilhar a história de Piracicaba além das fronteiras através das suas fotos espetaculares. Coelga Henrique que tanto me auxiliiou nos breves momentos que trabalhamos juntos. Deus o abençoe e fique em paz.

  2. Antonio M.L. Toledo em 11/09/2014 às 09:05

    Fiquei chocado com a morte do Spavieri. Convivi com ele nos anos 70/80 no Jornal de Piracicaba. Há muito não o via mais, tampouco sabia da sua enfermidade. Pessoa bondosa, alegre, que deixa uma saudade enorme. Descanse em paz, querido Spavieri.

  3. Vera Pavanelli em 11/09/2014 às 14:08

    ….me consolou , me abraçou porque estavamos passando pela mesma dor. Choramos juntos. Hoje choro com saudades do amigo , irmão , companheiro, do homem bom ,da ausência de uma grande alma. Adeus Henrique Spavieri ! Chega de sofrimento .<3

  4. Erasmo em 11/09/2014 às 14:31

    Sensacional, Cecilio, parece uma foto do proprio Spavieri esse seu texto.

  5. Marco Benatti em 11/09/2014 às 15:24

    Sem dúvida uma perda inestimável. Excelente profissional e grande pessoa. Conheci Spavieri no período em que fui editor do Jornal de Piracicaba. Com seu jeitão despojado, foi um dos poucos a me receber de braços abertos na redação do Jornal, à época, não acostumada ao comando de “estrangeiros”. Ainda lembro do seu sorriso e seu abraço ao me ver. Fica em paz, grande Spavieri!

  6. Cesar Costa em 11/09/2014 às 18:01

    Parabéns Cecílio pela justa homenagem. Quanta sensibilidade em suas palavras.Belo chute na boca dos pseudos poderosos da imprensa piracicabana.

  7. Roberto Souza em 11/09/2014 às 18:33

    Morte anunciada do Henrique

    Olá querido Cecílio fiquei comovido com a história recente do Henrique Spavieri por meio de sua sempre impecável narrativa. Fiquei e estou muito emocionado. Você lembrou muito bem quando se referiu à doença da alma que antecede o câncer. Que o Grande Arquiteto do Universo ilumine e guarde nosso amigo. (Roberto Souza, o Jota Roberto)

  8. Rubens Santos Rêgo Fontão em 12/09/2014 às 10:00

    Eita nóis!! Grande texto Cecílio, para variar! Você falou a verdade que todos sabem , mas poucos tem a coragem de dizer! Ao sair do JP o Henrique foi definhando, morrendo se entregando. Pois , como você disse, a dor da alma é maio que a dor física! Beijão Cecílio! Bom dia!

    • Roberto Souza em 12/09/2014 às 16:12

      Olá caro Rubens, tudo bem? Estou fora de PIracicaba desde 1979, trabalhando em São Paulo.
      Senti muito a perda do amigo Henrique Spavieri. Pelo que entendi a mágoa dele estava relacionada com o JP? Ou teve outras decepções posteriores? Abços.

  9. Fábio H. Mendes em 12/09/2014 às 15:29

    Na alma, Cecílio.

  10. Maria Araujo em 12/09/2014 às 22:21

    Cecilio, você é, sem a menor sombra de dúvidas, um mestre das palavras. Estive por perto do Henrique quase que toda minha vida e não conseguiria com a sensibilidade e delicadeza com que você o traduziu. Maravilhoso!
    Saudade eterna de nosso querido Henrique.

  11. Beth Elias em 13/09/2014 às 00:07

    Perdemos mais um irmão. Seus olhos eram a câmera da sua alma… fecharam-se por não suportar o “feio”…veio para iluminar ! Dói muito a sua partida !!!!

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