Naufrágio dos salva-vidas

NaufrágioVá lá que pareça um arremedo de canto de Sofonias, de lamento e visão de fim. Mas não é. Pois, para mim, são sinais claros de esperança. Ora, deixei de acreditar na cólera de Deus, no dia de sua ira final, o do apocalipse, o tão terrível momento que seria apenas o “dia do Senhor”, o “dies irae”, dia da ira, da cólera, da vingança. Anseio, porém, pelo advento da ira humana, da cólera dos bons, da raiva produtiva, da reação dos decentes contra a ação dos indecentes. A vida é ação e reação: amor paga-se com amor; violência com violência. A lição de dar a outra face ao inimigo vale apenas em brigas entre amigos e de família. Na guerra, é a espada, pois o próprio Cristo anunciou que traria a espada e não a paz.

Lá, desde os romanos, veio-nos a lição que tem sido neglicenciada: “se queres a paz, prepara-te para a guerra.” É o “si vis pacem, para bellum.” Os bons têm passado por tolos, na acelerada ascensão dos maus, que estão impunes. Há um pacto entre corruptos, dominando instituições, cúpulas diretivas, organizações. O povo é massa. Mas é nessa massa, aparentemente amorfa e caótica, que está a semente do novo, da explosão do insuportável, da retomada do princípio. Ora, mudar é pouco, ação paliativa. Revolução é ato transformador, que implica – muito mais do que a novidade – a redescoberta do novo eterno, a retomada, a reconquista, a recuperação do que se perdeu.

Há quem insista em construir nas nuvens ou sobre a areia. Não sobrará pedra sobre pedra. Construções fazem-se em terreno sólido, como o plantio sábio na terra fértil. Plantar no deserto é acreditar em milagres. Não há colheita. Mas a semente, caída na terra generosa, explode em vida, em frutos e em bênçãos. Ora, se quem semeia ventos colhe tempestades, aquele que semeia suspiros colhe brisas. Temos plantado em terra morta, proclamado em desertos, nossas construções fizeram-se em chão frágil, arenoso. Tudo está ruindo. Mas a história de nossos ancestrais nos chama para ouvir a lição imemorial: não há reconstrução se não houver escombros.

Confesso minha angústia diante de quadros que, finalmente, se me vão revelando como artificiais. Refiro-me aos jovens, contra e dos quais temos dito as coisas mais tolas, criando imagens falsas e desfiguradas. Pois, nos últimos tempos, como que se consolidou a convicção de estarmos diante de uma juventude indiferente, alienada, preguiçosa, acomodada, geração sem destino e sem futuro. Mas não é assim. Ou estamos ou fomos enganados. A juventude está à beira do colapso, sim, mas por inanição, por serem-lhe negadas as fartas porções de idealismo, de espiritualidade, de sonho de que precisa para desabrochar.

Planta sem adubo morre, fenece. Da mesma forma como apodrece o fruto maduro que não foi comido, chupado, sugado. E é isso que me tem dito a vivência destes últimos meses, numa para mim surpreendente mas empolgante convocação para estar mais próximo de jovens, conversando, ouvindo, falando. Aconteceu não sei se por acaso, se por estar escrito nas estrelas. O fato é que, numa palestra aqui, numa conversa acolá, os encontros foram-se repetindo e eis que esse universo jovem me engolfou e me vi como um salva-vidas mergulhando em águas tempestuosas ouvindo gritos e apelos de náufragos. A juventude está naufragando. E nós, seus salva-vidas, damos-lhe as costas, fingimos não ouvir ou, pior que tudo, ficamos surdos. Bom dia.

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