Niágara Paulista e tristeza

Niágara PaulistaCada vez mais, assusta-me o mistério do tempo. E, em especial, neste momento, quando me vejo no longo mas excitante processo de recuperação de memórias. É-me angustiante, pois preciso escrever antes de esquecer o que houve nesse que, agora, me parece um milênio de vida. Assusto-me diante do tanto que aconteceu, das transformações, mudanças, golpes, revoluções, a vida indo e voltando em hábitos e costumes, a fascinante experiência de, de uma cidadezinha do interior, viver tudo o que aconteceu no mundo.

Já não creio mais sejam apenas 54 os meus anos de jornalismo, essa longa jornada deste os meus 16 anos quando entrei numa redação de jornal para aprender. Professores meus – em especial Benedito Cotrim e Padre Eduardo Affonso – enviavam, aos jornais, composições minhas feitas em classe. Tudo começou num Dia das Mães, um trabalho de escola. Quando me dei conta, a redação escolar estava nos jornais, enviada por meus mestres. Logo depois, lá me vi na redação, como ouvinte de revisor. E se assim começou, ainda não terminou. E não sinto mais terem sido 54 anos, mas um milênio, pois a memória se me vai aguçando a cada foto de meus arquivos que revejo, a cada documento que redescubro.

Lembro-me, nos 1950, da luta que já se travava contra a poluição do rio pelo que, então, se chamava “restilo da cana”. A grande responsável era a Usina Monte Alegre, dos todo-poderosos Morganti. A batalha era incansável, especialmente pelo poderio deles, pelas mil explicações que não eram aceitas, até que, afinal, se descobriu que o restilo serviria como excelente adubo. E, então, Carvalho Pinto inventou o Sistema Cantareira que iria roubar água do nosso rio Piracicaba. Ele, como governador, garantia medidas protetoras, barreiras, etc. Mas, quando o golpe militar aconteceu, não mais havia Carvalho Pinto no governo de São Paulo e, com o governador nomeado Abreu Sodré, aconteceu o desastre. Mesmo assim, a luta foi intensa. E Sodré deu sua palavra, ofereceu garantias ao povo e aos deputados piracicabanos Salgot Castillon e Domingos José Aldrovandi de que o rio Piracicaba não seria profanado. Mentiu.

Tenho, entre fotos e postais guardados – e que sonho transformar em livro, numa histórica iconográfica de Piracicaba – um que mostra o que Piracicaba e o rio éramos. Está escrito no postal, como título e indicação: “Niágara Paulista”. Além de Ateneo, de Atenas Paulista, de Florença Brasileira, de Pérola dos Paulistas, o rio e o Salto faziam de Piracicaba também o “Niágara Paulista”. Por que as novas gerações não sabem disso? Por que esse verdadeiro crime de sonegar o nosso passado, de renegar a nossa história, de não transmiti-los às crianças e jovens e, também, aos que para cá vieram morar, honrando-nos com sua opção? Na verdade, entendi que há “piracicabanos por escolha” que amam mais esta terra do que muitos “piracicabanos de nascimento.” É a maldição do filho que renega a própria mãe.

Penso na “Niágara Paulista” quando, ao passar pelo rio, vejo-o quase moribundo, exausto, exangue pois a sua água é seu sangue. É um rio milagroso, o “rio sem vergonha”, como dele dizia o saudoso Felisberto Pinto Monteiro, pois basta-lhe uma chuvarada para se encher de novo, fascinar, seduzir. O humor do povo piracicabano depende do rio. Na cheia e na normalidade, somos o povo alegre e feliz, que vai à beira rio ver e extasiar-se com o milagre das águas. E que, no estio, entra em depressão, como se o nosso umbigo estivesse sendo sugado. Já proclamei e volto insistir: lá, na rua do Porto, no rio, está a “pia batismal” dos piracicabanos.

Confesso sentir medo. A “Niágara Paulista”, não nos esqueçamos, já foi chamada, também, de “Amsterdam Brasileira”, quando, por nosso descuido e omissão de lideranças, as drogas invadiram lares, devastando jovens, corrompendo polícia, ministério público, políticos, justiça. Foi nos anos 1980. Os efeitos ainda permanecem, causas continuam sem ser enfrentadas. Lições do passado não servem a quem não tem sensibilidade para amar. E Piracicaba nada mais precisa do que ser amada, como toda mulher, como toda noiva. Esta Noiva da Colina está sendo mal amada. Inevitavelmente, irá nos amaldiçoar. Mesmo porque, por ser digna, não se entrega a aventureiros. Sofre o assédio, machuca-se pela violência, mas não se entrega e não se rende. Bom dia.

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