Porta fechada

Vicente Celestino foi, talvez, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Quando não havia recursos fonográficos e a tecnologia era precária, a voz de Vicente Celestino empolgava multidões nas praças das cidades brasileiras, sem uso de microfones ou de altifalantes. Foi um ídolo popular que atravessou gerações. Casado com a escritora Gilda de Abreu, autora de livros de sucesso, Celestino imortalizou-se com músicas como O Ébrio e Porta Aberta, dramáticas e doídas.

Confesso que nem me lembrava mais dele, apesar de um dos romances de Gilda de Abreu, “Mestiça”, continuar sendo uma das mais belas recordações de minha meninice, livro que me despertou fantasias, sonhos, na esperança de encontrar um amor como a mestiça. Aliás, até encontrei ou inventei que encontrei: uma menina linda, de olhos verdes, ela e eu em nossos dez anos de idade, andando sob as árvores da Usina Ester, em Cosmópolis. De Vicente Celestino, porém, eu nem mais me lembrava, também eu intoxicado pelo lixo que, sob o falso nome de música, infecta rádios e televisões.

Ora, confesso meu recolhimento cada vez maior e intenso. Bendigo os céus por meu isolamento, graças ao qual, penso eu, ainda não enlouqueci e consigo pensar, meditar, refletir contemplar. Mas há um problema: quando saio às ruas, quando me vejo atropelado pela grosseria de motoristas idiotas, pela absoluta falta de educação das pessoas nos espaços públicos, sinto-me violentado. Altera-se-me a pressão arterial, acelera-me a circulação, atordôo-me. Nunca imaginei que a ferocidade fosse ocupar, de maneira tão impune, esta terra que foi doce e gentil.

Pois bem. Passando diante de uma igreja, assustei-me: toda ela estava cercada por grades. Passando diante doutra, a mesma revelação do fracasso, da derrota, da impotência diante do mal, da barbárie e da estupidez humana: também cercada por grades. Foi, então, que Vicente Celestino me ressurgiu à lembrança, a canção generosa e apaziguadora que ele compôs, cantou e divulgou: “Porta aberta/ tendo o emblema de uma cruz/ esta porta não se fecha/contra ela não há queixa/ são os braços de Jesus.” Cadê?

Eis pois o resultado de nossas leniências, covardias, omissões e descuidos: nem mais as igrejas têm ou oferecem segurança. Aquele “Ide e Ensinai” parece que se transformou num “Venham e se escondam”. Estamos prisioneiros de nós mesmos, apesar dos imensos carrões que desfilam pelas ruas, das poses e narizes empinados que se mostram em reuniões sociais ou em revistas de futilidades. Prisioneiros em apartamentos, prisioneiros em condomínios, prisioneiros na alma, que se não pode expandir por não ter mais para onde ir, com o quê sonhar ou aquilo de belo e bom para buscar.

Vicente Celestino nada teria a compor, a não ser comparando igrejas a presídios, nesta sina lastimável que nós mesmos escolhemos, o caminho pelo qual optamos: escravos de um sistema pérfido e impiedoso. Até aquela porta se fechou, mesmo com o emblema da cruz e com os braços fictícios de Jesus. Que pena. De minha parte, porém, não reclamo. Recolhi-me, por decisão pessoal, antes de ser expulso. Acho que mosteiros nasceram desse horror à selvageria, um compreensível “fugit mundi”. Sei lá. Bom dia.

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