Saramago

SaramagoFoi a morte esperada e, nem por isso, menos sentida. José Saramago estava doente, recolhido em seu refúgio nas Ilhas Canárias. Morreu em silêncio, como se não quisesse atrapalhar as pessoas, ele que, como escritor, fez questão de incomodar, de espetar consciências, de inventar, em sua criação singularíssima. Dizer que a humanidade perde um de seus mais esplêndidos vultos intelectuais é incorrer no óbvio. A obra de Saramago está posta, acabada, completa. E a língua portuguesa, quando ele recebeu o Nobel de Literatura, viu-se consagrada num mundo onde é tão pouco falada, lida, conhecida.

Ora, não me atreverei a discordar da imensidão dos críticos literários que, em todo o mundo, saudaram o escritor e pensador José Saramago. Confesso, porém, que – tendo lido algumas de suas obras – não consegui me alinhar entre os seus fiéis leitores. Há um estilo diferenciado, construções ousadas, como que uma nova maneira de se expressar. Mas não me apanhou nem pela alma, nem pela razão. E a culpa deve ser minha, pois seria pretensão demais acreditar que, por não gostar da literatura de Saramago, ela seja menor. É algo que deve estar ligado a meu mundo interior, a uma concepção estética pessoal, a uma visão mais simples de vida, de belo, de mundo. Para mim, a obra que precisa ser explicada não merece atenções maiores, pois obra artística fala por si mesma, penso eu. Seja um quadro, uma escultura, uma frase, um conto, um livro.

Não consegui mais ler Saramago, como, ainda hoje, não consigo ler o “Ulisses” de Joyce, nem mesmo “Grande Sertão”, de Guimarães Rosa. Quanto a este, é obra que, no meu entender, deve ser lida ao longo de toda uma vida, destrinchando e decifrando frase por frase, palavra por palavra, um livro, portanto, mais para estudiosos do que para leitores. Ao contrário de Sagarana, que encanta pela simplicidade. O “Ulisses”, por sua vez, é teimosia que cultivo aplicadamente: a cada cinco anos, abro a minha edição de 1964, tento ler e, ainda agora, não consigo passar das primeiras dez páginas. Como Joyce tem multidões de admiradores e de fanáticos adoradores de sua obra, admito com sinceridade e franqueza: o burro sou eu, a incapacidade é minha.

Em Saramago, o que me atraiu é a força do pensamento, a capacidade de reflexão, a percepção liberta de preconceitos antigos mas, talvez, aprisionada a novos outros. No entanto, o estilo da narrativa saramagueana nunca conseguiu me seduzir, talvez pelas fontes literárias primeiras que me encantaram e ainda encantam: Eça, Machado, Vieira, Fernando Pessoa, Neruda, Érico Veríssimo, o contador de histórias ímpar que foi Jorge Amado. E, depois, mulheres de quem tenho raiva e inveja ao mesmo tempo, tal a doçura da escrita, a simplicidade, a genialidade: Rachel de Queiroz, Cecília Meirelles, Adélia Prado, entre as quais não alinho a Lispector, que não consegue me apanhar pela alma.

O fato é que a humanidade perde outro de seus mais fecundos escritores, pensador singular, personalidade polêmica, indomável, rebelde. José Saramago lá se vai e outro vazio se abre nesse imenso deserto de idéias e de humanidades, devastado pela tecnologia neutra, fria e dependente do caráter de quem a utiliza. Bom dia.

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