A simplicidade da moradia caipira

Em São Paulo, antes da “trilha do homem branco”, havia a “trilha dos índios”, que antecipou a passagem do colonizador por picadões e estradas  primitivas. Ao longo do rio Tietê – o “rio paulista por excelência, o rio fundo, rio verdadeiro, rio dos canários” – aconteceu a grande saga das descobertas e das conquistas. Antes de ser Tietê, era, para o índio, o rio Anhembi, “rio dos nambus, rio das anhumas”. Com o surgimento do homem branco, tudo se transformou. E começou a caçada aos índios, a escravidão deles e dos negros.

O caipira nasce dessa fusão do português conquistador, do índio e do negro. Como que andarilho, é, o caipira, um criador de roças e de roçados. Na grande caminhada, detinham-se em algum ponto, faziam pequenas lavouras, desbravadas de muita vegetação e florestas. No Brasil Colônia, a grande maioria das pequenas propriedades eram roçados feitos em solo virgem, em terras devolutas. Esse andarilho usava o fogo para a limpeza do terreno e, com isso, esgotava a terra e tornava pobre a agricultura.

Estando sempre de passagem, o caipira criou um estilo de moradia provisória, em torno da qual podia criar galinhas e porcos, plantando especialmente milho e feijão. À beira dos rios, o caipira – palavra formada por caá (mato), i (água), pira (peixe) – soube tirar alimento das águas, incluindo o peixe em sua alimentação básica.

Nos vales do Tietê, há como que uma “civilização caipira”. Da barra do rio Sorocaba ao Piracicaba, esses roçados e as moradias rústicas deixaram vestígios. E há descrições de moradas que definem um estilo de vida. Desde o final do longínquo 1760, há escravos negros participando dessa epopéia, ao lado de índios e brancos.

Uma casa caipira

No início do século XX, o escritor piracicabano Joaquim Silveira Mello descreveu, ainda intata, a casa de um agrimensor português, José de Campos Negreiros, às margens do rio Piracicaba, conforme se encontrava em 1830. É a seguinte a descrição:

Cozinha Caipira (Almeida Júnior – 1850/1899) 1895 – Óleo sobre tela

“A casa está construída na barranca do rio a dentro (Piracicaba). Parece que assim foi construída para gozar de direitos no rego d´água desviado do Salto. É pequena e modesta. Ao entrar, dá-se com uma sala pequena, denominada alpendre, onde se vê uma pequena mesa para as refeições dos camaradas e dos estranhos, alguns mochos com assento de couro, num canto um pequeno pote que chamam de cambuci, com uma tampa redonda de tábua e sobre ela um coco de cabo comprido. Ao lado, uma cama feita e, no outro, uma pilha de couros de anta, onça, veado, ariranha e lontra, ali armazenados pela dona da casa, D.Aninha, que alcança anualmente bons lucros no negócio de compra e vendas de peles.

Dentro de uma varanda um tanto espaçosa, via-se num canto a igaçaba (um pote grande e tosco) para decantar a água do rio, tendo ao lado o cambuci. Noutro canto, sobre uma mesa, o oratório. Num dos lados da varanda, um estrado de tábuas com listrões vermelhos. Nos outros dois cantos, duas redes e, entre elas, dou ou três assentos baixos que chamam de tripeças. No outro lado da varanda, está a mesa de jantar, ladeada de cois compridos bancos de encosto e, sobre a mesa, uma granede moringa e um copo de vidro azulado, de pé com a boca para baixo e de fundo. Redondo.”

  O mobiliário

No Vale do Paraíba, o estilo de vida e de morar é quase que o mesmo dos antigos moradores de Piracicaba, nossos ancestrais. A escritora Maria Tereza Marcondes, narrando suas lembranças (“Tempo & Memória, 1988, Prefeitura de Taubaté), descreve a qualidade  do mobiliário das “casas grandes” caipiras, coloniais. Alguns de seus destaques:

“A sala de hóspedes dava para dois quartos com duas camas de solteiro em cada uma. Duas canastras de couro, com tacha douradas, onde se guardava a roupa de cama, tudo de linho, bordado a mão. Mesinhas com jarro, bacia, baldes, urinóis e saboneteiras, tudo esmaltado de branco. Na sala, uma mobília de palhinha, com capas brancas nas cadeiras e duas caminhas estreitas chamadas marquesas. A casa não era de luxo, tudo muito simples, porém, de boa qualidade. (…) Na parede, um grande espelho e muitos quadros de santos e retratos.”

Maria Tereza lembra-se de  quadros que fizeram parte da religiosidade das famílias caipiras até passado ainda recente: “olhando de frente, via-se São Jorge, de um lado o Coração de Jesus e, de outro, o Coração de Maria.”

  A sala de jantar

A sala de jantar, diz a autora, “tinha três janelas para a frente e uma porta e janela para o jardim. Bem no meio, uma mesa de três metros de comprimento, com bancos e cadeiras à volta. Num canto, uma linda rede azul, com renda branca de crochê caindo dos lados. Uma talha, com água sempre fresquinha e um suporte, com bacia para lavar as mãos. Na parede, um porta tolhas, um cabide que tomava a parede inteira, sempre cheio de chapéus. Um estrado de madeira, forrado com esteira de taboa, para sentar e ouvir estória, à noite. Um guarda-louça com portas de vidro para a louça de hóspedes, toda de porcelana inglesa e o talher que era de prata. Para a Louça diária, havia um outro armário. No meio da sala, pendurado no teto, um lampião belga que clareava tudo. Na parede, um relógio grande, daqueles que marcam até o dia do mês.”

O Estado de São Paulo – incluindo também a capital dos paulistas – nasce de uma história de caipiras, de sertanejos que, parando de caminhar, construíram uma civilização à beira do Tietê, do Paraíba, do Piracicaba, com características próprias. Antes de ser um grosseiro, os caipiras paulistas e mineiros são refinados.

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