O Romance do Soldado Jogador

Esta é uma história de caráter universal. Sua origem perde-se no tempo, acreditando-se que os primeiros versos tenham surgido na França por volta de 1690. Como se espalhou pelo mundo, não se sabe. O fato é que o “Romance do Soldado Jogador” se tornou conhecido em toda a Europa, nas Ilhas Canárias, foi-se adaptando em cada país, chegando à América Latina, especialmente na Argentina, Venezuela e Brasil.

No Brasil, há diversas versões da história: a capixaba, a gaúcha, a nordestina e a mais conhecida delas, a mineira. Segundo o o piracicabano Flávio de Toledo Piza – inesquecível intelectual de nossa terra – em Minas Gerais, tem-se notícia da história a partir de um circo de cavalinhos na cidade de Delfim Moreira, ao Sul do Estado. A versão foi absorvida pelo povo e se espalhou, tornando-se famoso um dos principais “cantadores” populares, Antonio Fernandes, mineiro de Vargem Grande, que morava na Fazenda Alegria, em Delfim Moreira.

O “Romance do Soldado Jogador” é parte belíssima dessa cultura caipira brasileira, que mistura religião e política, malícia e seriedade. A versão mineira do “Soldado Jogador” – apresentada em seguida – é tida como a mais tocante.

I
1-No domingo eu fui na igreja
2- Cumpri minha obrigação,
3- Não tinha um livro de reza
4-Levei um baralho na mão.
5- Eu fui trançando o baralho
6- Rezando no coração,
7- Naquelas cartas, eu cumpria
8- O meu dever de cristão.

II
9- Eu tava dentro da igreja
10-Com o meu baralho inlevado,
11- Não inxerguei um sargento
12- Perto de mim ajoelhado.
13- Daí a pouco o sargento
14- Foi dá parte ao delegado
15- Dizendo que na igreja
16 -Tinha um homem
17 – Fazendo um grande pecado.

III
18- Daí a pouco na igreja
19- Eu vi entrar um soldado
20- Chegando me disse logo
21 – O senhor tá intimado.
22 – O doutor mandô chamá
23 – Para ser interrogado.

IV
24- Eu fui segui pra delegacia
25 – A polícia me escoltando,
26 – Na rua em que eu passava
27 – O povo estava me olhando
28 – Sem saber o crime que eu tinha
29 – De um baralho estar levando

V
30- Logo assim que eu fui chegando
31 – Na presença do doutor,
32 – Ele foi me interrogando
33 – Tratando-me de pecador
34 – Perguntando se na igreja
35 – É lugar de jogador

VI
36 – Eu fui, respondi pra ele
37 – Meu pensamento eu não falho
38 – Eu fui lá rezá  pra Deus
39 – Diminui os meu trabalho.
40- Vou fazê a explicação
41 – E depois de bem explicado
42- O doutor me dará razão.
43 – Verá que em todo baralho
44- Tem sincera devoção.

VII
45 – Si eu pego num ÁS, que tem
46 – uma pinta somente,
47 – Eu me lembro que existe
48 – Um só Deus onipotente.
49 – Que, quando chamamos por ele,
50 – É certo que tá presente.

VIII
51- Quando eu pego num 2,
52- Com gosto me alembro
52- Que em duas tábua de pedra
53 – O Criador escreveu
54 – Quando nas sarça ardente
56 – A Moisés apareceu.

XIX
57 – Quando eu pego num 3,
58- Rezo com sinceridade,
59 – Lembrando das três pessoa
60 – Da Santíssima Trindade
61 – Padre, Filho, Espírito Santo,
62 – Em um só Deus de verdade.

X
63 – Quando eu pego num 4,
64 – 4 de pau encruzado,
65 – Eu me lembro dos quatro cravo
66 – Que Jesus foi cravado,
67 – Foi preso sem devê crime,
68 – Morreu sem devê pecado.

XI
69 – O 5 me faz lembrar aqueles
70 – Dias de dor, as cinco chagas doída
71 – Que sofreu Nosso Senhor.
72 – Derramou todo o seu sangue
73 – Pra salvá o pecador.

XII
74- Quando eu pego num 6,
75 – Eu faço a comparação
76 – Os seis dias da semana
77 – Na obra da criação,
78 – Em seis dia, Deus feiz tudo
79 – Sem nada por a mão.

XIII
80 – O 7 me lembra a hora
81 – Hora triste, amargurada,
82 – Os sete passo de Cristo
83- Na sua paixão sagrada.
84- Com sete espada de dor,
85- A Mãe de Deus foi cravada.

XIV
86 – Quando eu pego num 8,
87 – Que oito pintas contém,
88 – Eu me lembro que não se deve
89 – Armar falso de ninguém.
90 – Porque quem arma falso
91- Dos outros,
92 – O perdão no céu não tem.

XV
93 – Quando pego um 9,
94- Vem logo a recordação,
95 – Os nove meses ditosos
96 – da Divina Encarnação
97 – Que Jesus passou no ventre
98 – Da Virgem da Conceição.

XVI
99 – Quando eu pego num 10,
100 – Não posso mais esquecer
101 – Dez mandamentos ficaram
102 – Para o homem se reger.
103- Quem cumpre os 10 mandamentos
104 – Não quer sua alma perder.

XVII
105 – Quando eu pego numa Dama,
106- Me alembro da Virgem Maria.
107 – Ai de nós, se não fosse ela,
108 – Se não fosse ela, o que seria?
109 – Ela é a mão de Deus
110 – E do pecador na agonia.

XVIII
111 – Quando eu pego num Rei,
112 – Vem logo na minha memória
113 – Jesus Cristo poderoso,
114 – O Divino Rei da Glória
115 – Que não precisa de forças
116 – Para alcançar a vitória.

XIX
117 – E foi de ansim, seu delegado,
118 – Que na igreja eu fui rezá.
119 – Agora estou a suas ordens
120- O que vós mecê desejá:
121- Ou me ponha na cadeia,
122 – Ou me deixa arretirá.

XX
123 – O delegado pensou, pensou,
124 – Não achô o que falá.
125 – Viu que eu tinha razão,
126 – Começou a perguntá
127 – Por que motivo eu deixava
128 – O Valete sem contá.

XXI
129- Eu fui, respondi pra ele:
130 – O Valete é carta ruim,
131 – Nunca vi tão ruim assim.
132 – Quando eu compro um baralho,
133 – No Valete eu já dô fim,
134- Porque parece com
135 – O Sargento que
136 – Veio dá parte de mim.

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