A fé do povo piracicabano

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba que amamos tanto”, de Cecílio Elias Netto.

 

 

Esta, a nossa, é uma terra abençoada desde a Criação. Mas Deus – ou os deuses – divertem-se conosco. E acho que Ele(s) gosta(m). Pois somos de uma humanidade profunda. Com todas as virtudes, mas, também, com todos os vícios, defeitos, artimanhas, contradições, hipocrisias. É a nossa imensa – penso eu – beleza espiritual: “Piracicabanus humanum est”.

Somos um povo de fé. De fé profunda. Desde as nossas origens. Mas com dúvidas, incertezas, diversidades. Trata-se de herança de nossos ancestrais.

Por isso, Piracicaba é uma terra assumidamente tradicional. A palavra tradição, em sua origem latina, diz tudo: “traditio” , herança, transmissão. E a nossa é a tradição, também na fé, do conflito e da comunhão, do desencontro e do encontro, dos preconceitos e da convivência. Está na gênese do caipira de Piracicaba, descendente de duas trindades históricas.

Duas trindades… Talvez – porém e também – algumas outras. Mas as duas principais: “A Coroa, a Cruz, a Espada”. Que , à realidade da época, se impuseram naturalmente. A Coroa, representando as luzes do Imperador. A Cruz, nos sedutores – mas também amedrontadores – mistérios da Igreja Católica. E a Espada, na força e no poder dos governantes.

A segunda trindade – irmã gêmea da primeira – está no ventre fecundo do próprio Brasil: a fé, nascida dos encontros e desencontros de negros, índios, portugueses. Dos índios, com seus deuses ingênuos; dos negros, com as fascinantes deidades pagãs; dos portugueses, com sua dogmática fé cristã. Dogmática, mas também supersticiosa e conveniente. Disso tudo, surge, também, o sincretismo religioso de Piracicaba, com sua fé confusa e difusa, mas arraigada, acima de tudo, por ser inspirada pelos mistérios.

Tudo começa com teatralidade que se transforma em lenda, uma história fascinante. Na povoação, o orago de Piracicaba – já em 1767 – é Nossa Senhora dos Prazeres. Era a Cruz, imperando. No entanto, a Coroa – o poder do governante – resolve expulsar a santa e substituí-la por Santo Antônio. Como resolver? Piracicabano sabe conviver. E faz a devoção a ambos. Se é mistério, por que brigar? Essa dualidade formaria o caráter de um povo que, em dois séculos de existência, soube transformá-la em sabedoria. É a “traditio”, a herança que fez, de nós, um povo tradicional. Com raízes. Mesmo que misteriosas.

A fé consolida-se nos conflitos. As imigrações trazem novidades. Em 1853, começam a chegar alemães. E, com eles, a fé dos adventistas. Eles sofrem – sem direito à convivência, nem mesmo a sepultamentos em cemitérios católicos – mas resistem. Em 1895, criam a primeira Igreja Adventista das terras paulistas, aqui, no nicho piracicabano. Vivem no “Bairro dos Alemães” e têm o “Cemitério dos Alemães”. Mas vencem e nos enriquecem com Inteligência, arte e operosidade.

A figura de Prudente de Moraes avulta. Ele – criando a Maçonaria (1875), que professa a fé da Igreja Positivista – prega a convivência e a coexistência democrática e republicana. Defende alemães, protestantes, a diversidade. Quando os metodistas chegam a Piracicaba – vindos da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, após um breve período em Santa Bárbara d´Oeste – Prudente de Moraes protege e apoia a missionária e educadora Martha Watts, na criação do Colégio Piracicabano (1891). Seu apoio é fundamental, pois Prudente faz questão de matricular seus filhos e parentes na então pequenina escola de Martha Watts.

Aqueles missionários criariam, em Piracicaba, a terceira Igreja Metodista do Brasil. E – apesar dos preconceitos e conflitos – vivemos o aprendizado da convivência. Em 1906, Eugênia da Silva cria, corajosamente, o primeiro Centro Espírita. E, em 1920, a negra Maria Ventura instala a primeira Igreja Pentecostal piracicabana, a Congregação Cristã do Brasil.

Batuques do candomblé, da umbanda ressoam nas noites piracicabanas. E igrejas cristãs entoam hosanas em diversos e diferentes sons e tonalidades. É a fé na alma de um povo. Que faz, de Piracicaba, talvez a mais pagã das cidades cristãs. E a mais cristã das cidades pagãs. Que o contador de histórias do futuro o possa desvendar.

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