Canto dos 80 anos
“Da planície deste papel em branco
oitenta anos nos contemplam”
Os amigos – os parentes, e amigos – os que se foram,
os que estão ao alcance dos olhos, do abraço e dos e-mails,
todos guardados no coração e no baú da memória.
Junto das amadas que nunca souberam.
Os colégios, escolas e universidades –
o Coleginho das freiras de Araraquara,
o Colégio Progresso de Araraquara,
a Luiz de Queiroz de Piracicaba,
a Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Os mestres – das freirinhas de Araraquara
aos Prêmios Nobel de Berkeley
os caminhos da leitura –
as histórias em quadrinhos, Monteiro Lobato,
as aventuras do homem da selva de Edgar Rice Buroughs,
e dos marinheiros de Rafael Sabatini.
A descoberta da literatura brasileira e a revelação da poesia –
Mario de Andrade, que eu quase conheci,
Manuel Bandeira que me deu suas Poesias Completas,
Mario Quintana, Cecília Meirelles, Cora Coralina.
E os estrangeiros (estrangeiros?) – Cardarelli, Ungaretti,
Walt Whitman, Langston Hughes, David H. Lawrence, T.S. Eliot
Rupert Brooke – o que morreu em campos de Flandres, onde cresce a relva
os quatro “poêtes maudits” e tantos outros
que continuam ao alcance das mãos e dos olhos.
As cidades e as ruas que percorri –
as vielas mal calçadas de Roma e Paris,
as pontes de Genebra,
a vastidão fria da Praça Vermelha e da Praça da Paz (?)
as luzes e o formigueiro da Ginza,
as calles com casas sem telhado de Lima,
Market de São Francisco, Canal Street de New Orleans,
o Central Park e os (quantos) aeroportos,
as colinas de Lisboa e os paseos de Madrid,
o Zocalo da Ciudad do México,
os balcões (filigrana em madeira) das casas de Bogotá e Medellín
e de granito duro de Santiago e Valparaiso,
contaponto para as flores de Vina del Mar
Mais perto, as ruas de Araraquara
calçadas de paralelepípedos duros,
moles os corações dos vizinhos e dos não tão vizinhos,
a Rua do Porto e a Carlos Botelho de Piracicab
que leva ao Campus mais bonito do mundo
o da minha Escola Agrícola de sempre.
A celulose das árvores que foram cortadas
para o papel do muito (demasiado) que escrevi
ou publiquei –
as postilas escritas para aprender,
os livros escritos para ensinar,
os livros editados, vertidos e traduzidos para línguas
que eu não sei nem ler e nem escrever
Mas que alguém está lendo neste “mundo vasto mundo”
Uma outra verdade nova ( ou mentira interina)
que com pesquisa e experimentação se me revelou
os alunos todos – quantos não sei –
que repartiram comigo a alegria da busca da verdade,
na maioria das vezes,
e o desapontamento de uma ou outra frustração.
Passam no cine de minha memória,
em preto e branco e em cores depois
os colegas de Escola
os poucos que restam, os muitos que se foram
Por esta contemplação sem ordem, cronologia ou geografia
passa a sucessão das estações do ano que vejo
nas plantas e nas culturas –
germinações, brotações, colheita – vida plena e vida suspensa –
e sobretudo na sucessão das cores
o arco íris da primavera e do verão,
o branco e o róseo das azaléias de inverno,
os ipês roxos, amarelos e depois brancos
junto com os bicos-de-papagaio –
e não há outras estações para as flores
Passam as calçadas de Araraquara –
lindas pedras de arenito róseo
substituídos por ladrilhos cinzentos sem nenhuma graça
Calçadas com cadeiras nas noites quentes
para as conversas dos vizinhos
e o copo de limonada –
café à noite tira o sono.
Calçadas para brincar de amarelinha e jogar “bat” –
não me lembro como se jogava “bat”.
Calçadas de terra batida para jogar bolinha de vidro
e pelada e sujar a roupa –
para o desespero das mães
que não havia máquina de lavar.
Passam ao longe as músicas amadas –
Bach, Mozart (o mais moço doa anjos), Beethoven
o pontilhismo de Debussy e Ravel,
as dissonâncias de Stravinsky, o erudito e o
popular, na mistura tão brasileira de Villa,
a suave batida da bossa nova –
Tom, Vinícius, Chico, João
Astrud, Elis, Dorival
cantando uma beleza às vezes triste –
como a vida.
Que mais tirar dos guardados do baú?
o pôr do sol através das árvores,
o amanhecer com o bem-te-vi,
o entardecer com o fogo-apagô,
a noite com a coruja do toco,
o cachorrinho abanando o rabo
e pedindo carinho –
a gatinha vira-lata lambendo os bigodes sujos de leite
o passar da sucessão dos cantos bissextos
tardes, manhãs, coisas, gente, anjos, a Virgem, Jesus
a amada ignota, apenas desenhada no papel.
Passo em revista as comidas de que gosto –
o arroz com feijão e o ovo frito,
o pudim de pão,
o pão com manteiga e o café-com-leite:
afinal os prazeres simples são o último refúgio dos seres complexos
pontificava quem sabia das coisas (Oscar Wilde)
Mas também o macarrão italiano com fungo seco,
a coquille St. Jacques e o crepe Suzette
o guaraná de Antarctica, a gengibirra do Orlando
(ela terá gengibre ainda?)
o branco da Alsacia e o Chianti clássico
e, sempre, a cerveja de Adão.
Está sempre presente a casa de minha Mãe
(porque será que a casa é sempre da mãe nunca do pai?)
o pé-direito alto, nos cômodos grandes, a cozinha com
os fogões a lenha e a gás,
o quintal enorme com o cercado das galinhas para
o almoço do meio dia de domingo,
o jabuticabeira, as mangueiras, o pé de limão galego,
e a parreira das uvas mais doces;
fora o quartinho de despejo, o tanque de lavar roupa
e os tijolos e grelha para o fogo de
ferver roupa e o tacho de fazer goiabada.
a casa que existe apenas na lembrança, e como dói.
Vem-me a fazenda dos meus tios onde nunca aprendi
a andar a cavalo mas pescava lambaris ,
ajudava minha Tia a fazer manteiga,
dormia em colchão de palha de milho
depois de apagar a chama da vela –
mais tarde veio a luz elétrica
mas não tinha a graça de antes.
A chácara de minha Tia –
uma viagem de bicicleta –
as brincadeiras com meus primos
o pão-feito-em-casa, quente, com manteiga,
o chá inglês nas xícaras de porcelana
Lembro as igrejas todas que conheci e onde rezei –
a da Santa Cruz em Araraquara onde fiz a
primeira comunhão no ano da Revolução de 32
e onde ia com meu Pai à missa das 9 dos domingos,
a beleza ingênua da igrejinha desfigurada por uma reforma;
as capelas do Colégio Progresso e do Liceu (Campinas)
a madeira escura do Newman´s Hall em Berkeley,
o gótico da catedral de Genebra e de St. Patrick
o barroco de San Pietro, Ouro Preto, Mariana…
A capela do Lar dos Velhinhos com o Cristo da Rua do Porto
que Archimedes, amigo, pintou
A igreja dos frades com a marca de Frei Paulo
A capela de Monte Alegre com a ingênua pintura de Alfredo Volpi
A igreja da Pampulha, o hangar de Deus de Oscar Nilmayer.
As igrejas levam à recordação dos museus ´
o Ipiranga onde meu Pai e meu tio Padre me levaram
para ver a cama em que D. Pedro I dormira,
o depósito de arte do Louvre,
a beleza despojada da National Gallery
o encontro tão próximo do MASP
dentro da obra-de-arte de Lina Bo Bard,
os claro-escuros do Museu de Rembrandt,
Goya, El Greco, Picasso, Miro no Prado.
Pendurados na parede da lembrança
Os pintores mais perto de mim –
Van Gogh e os corvos no campo de trigo,
Toulousi Lautria e os saltimbancos
Cézanne e suas moças róseas
Modi e os olhos de suas mulheres
El Greco e suas imagens atormentadas
E os brasileiros –
Archimedes e o seu rio,
Candinho e sua colona de café
Gassman e seus cães espantados
O italianinho, cujo nome não vem,
e as suas marinhas
Guignard, suas igrejas e o marinheiro
em roupa de domingo
As mulatas gauguinianas de Di.
Quadros das coisas, dos números, de vida,
dos sonhos e do faz-de-conta.
Na lista das bibliotecas –
a da União Operária em Araraquara
onde o francês do Colégio Progresso
me ensinou Baudelauire –
muito depois vieram Rimbaud, Verlaine e Mallarmé
A do Colégio Estadual de Araraquara
e os 600 livros doados por Mario –
a abertura para o mundo
Aquela do foyer do Sto. Estevão em Pax –
tão lindo e tão abandonado, o carinho
de Leandro Guerrini para o moço estudante .
O milhão de livros de Berkeley –
um deles, o do parente (?)
Orlando Malavolti do século XVI
mais tarde, os da ESALQ, do IAC, do CENA
O presente, talvez o futuro e a poeira dos tempos.
Depois de amanhã haverá mais alguma coisa
para guardar e passar pela retina da memória?
Pira 11.08.2006
Para: MMLS, NM, VPA, WAF
e
CEN, JC, SÃO, TY
(Ilustração: Araken Martins)