Rua do Porto: jardim à beira rio plantado (final)

TESTEMUNHOS CENTENÁRIOS

O Senador Manoel de Moraes Barros, no século XIX, insistia para os piracicabanos arborizarem a frente de suas casas, desde que evitando árvores de grande porte. O engenheiro Francisco Júlio da Conceição – filhos dos Barões de Serra Negra – planejava o ajardinamento da Praça da Matriz, outras praças e ruas eram arborizadas com palmeiras e flamboyants. Mas a rua do Porto e as margens do Itapeva deveriam receber apenas eucaliptos. Eram, na realidade, ruas tratadas como solo encharcado, vistas como margens periféricas de uma cidade moralizada. Mas Rua do Porto e Itapeva continuariam sendo eixos de Piracicaba.

FRANCISCA ELISA

E os sofrimentos de Francisca Elisa da Silva, Francisca de Castro, a professora Francisca Elisa? Ela fora a primeira professora nomeada para a “Escola Mista da Rua do Porto, criada em 1873. Francisca Elisa vira crianças infestadas de piolhos, de pés no chão, vitimadas por febre tifóide. Mas aquela era, também, a “sua” rua do Porto, como tem sido sempre para cada piracicabano, a rua do Porto de cada um. E tanto ela sempre foi, é, continua sendo a rua do Porto de cada um — cada piracicabano amante dela — que Cecília Ferrari, neta de Francisco Morato, enfatiza algo de que se lembra desde sua meninice: a avó, dona Mariquinha, filha do Barão de Serra Negra, tentando “moralizar” a rua do Porto, “educando” mulheres da chamada “vida airosa” — como se dizia de prostitutas — e, especialmente, fazendo com que “negros e negrinhas” se colocassem “em seus devidos lugares”.

O ESPAÇO SÍNTESE

Testemunho dessa época está na antiga “Gazeta de Piracicaba”. Alguns dias após a abolição, diante da grande festa na rua do Porto e em trechos à margem do Itapeva, o jornal escreveu: “… agora que entrou o elemento negro, completamente livre e absolutamente viciado, em nossa sociedade, é preciso que a vigilância redobre.” A rua do Porto era o espaço dessa Piracicaba confusa, de alguma estranha maneira sábia: de monarquistas que liberavam escravos e que aderiam a ideais republicanos, de republicanos que buscavam manter valores monarquistas. A Rua do Porto era a síntese dessas contradições.

No século XX, os moradores dessa rua singular elegeram um símbolo, descendente de Nhô Manduca Duarte: o “Bico Fino” — João Duarte Novais Filho, herdeiro dos Duarte Novais, nascido em 1904 onde está, neste ano 2.000, o casarão da Rua do Porto, destinado ao Turismo.

LEMBRANÇAS DE PESCADOR

É 1900. Deixou registrado um pescador daqueles tempos:

– “E tinha Nhô Pedro que, quando o tempo esfriava, vestia o capote que usava na Guerra do Paraguai, azul por fora e forrado de baeta vermelha por dentro. Ele saía de casa apenas para conversar com o Afonso Pecorari.

E, na venda do Afonso Pecorari e de dona Amância — que se tornaria a “Arapuca” – as pessoas paravam para tomar a pinguinha, violeiros ficavam cantando, como cantando ficava o Nhonhô de Nhá Maria Bonita no repinicado de sua viola, na cantoria do “mode de inamorá”:

“O mode de inamorá/ eu insino pra mecê:/ pense bem no seu sentido/ pra mecê num isquecê./ Quando fô perto de gente/ pra ninguém num percebê/ num oie pra mim sorrindo/ que eu num oio pra mecê.”

NÃO URINAR NO RIO

No passado, sabia-se do encantamento da rua do Porto, rua de cururu, de caninha verde, de cateretê, de umbigada, de boêmia, de romance, de marginalidade sob controle. No entanto, mais do que uma história daquela rua, ficou o espírito dela, espírito de pescador. E de oleiro. De uma gente que sabe mexer com a terra e com a água, o barro e o peixe. Uma história feita de superstições, de sacralidade, de religiosidade sem religião.

Um pescador daqueles tempos deixou registrado como se faz para não se deixar perder o peixe fisgado no anzol. O primeiro segredo: nunca se deve urinar em água de rio onde se pesca. Urinar nessa água é o mesmo que “urinar na boca da madrinha”, sabedoria de pescador. Isso posto, é preciso, então, ter calma quando o peixe fisgado tenta escapar. Nesse caso — como acontece na vida — é preciso cuspir na água do rio três vezes, cuspir com vontade. Depois da terceira cuspida, o peixe amansa. Seja peixe do rio, seja peixe da vida — palavra de pescador.

CAUSOS SEM FIM

E Inhala Seca, quem não teve medo dela em Piracicaba? Ela morava numa barroca do Morro do Enxofre, num dos escondidos da pedreira e era horrorosa. Quanto mais se olhava para ela, mais a Inhala Seca crescia, aumentando de tamanho. O fantasma da mulher foi tão amedrontador quanto os do lobisomem, da mula-sem-cabeça, da grande cobra escondida no rio, mãe-de-fogo, todas as assombrações, histórias contadas secularmente na Rua do Porto. Por Alidor Pecorari, o Lelé, filho de Afonso. E Hélio e Paulo, filhos de Alidor, netos de Afonso. Contaram-nas, também, o “Bico Fino”, Tangará e Tote e Cláudio Tangará. E Elias dos Bonecos, que as conta a partir de delírios de homem abençoado pelos deuses das enchentes e das marés. Ninguém nunca esqueceu.

(A foto foi tirada no começo do século XX, registrando como era o “Armazém do Pecorari”, atualmente restaurante Arapuca.)

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