O sonho de Manoel Gomes Tróias (14)

Guerra de interesses

A reação contrária à locação da Clínica e Maternidade Piracicaba não conseguiu esconder o que Manoel Gomes Tróia denominava de “guerra de interesse de grupos”. Existia. Aos hospitais já existentes – dos Plantadores de Cana, Clínica Amalfi – e à Santa Casa, não interessava que a UNIMED tivesse hospital próprio. Até então, a crise permanente do então Hospital Piracicaba – tornado Clínica Santa Mônica – não oferecia qualquer ameaça. No entanto, sob o comando da UNIMED, a história seria outra. A radiologia, a maternidade, a clínica seriam, inevitavelmente, melhoradas, passando a competir com mais firmeza. E o próprio eixo político – então, centrado e firme ainda na Santa Casa de Misericórdia – poderia ser atingido. No mínimo, haveria divisão de influências. (Na foto, líderes da Santa Casa: drs.Losso Neto, Alfredo de Castro Neves, Nelson Meirelles.)

Eram essas algumas das causas, mas diversos os motivos da reação em cujo comando estavam médicos que, algum tempo depois, conseguiriam o afastamento do presidente, entre eles, Moracy Arruda, Eudes de Freitas Aquino, Bernardo Aguiar Jordão, Walter Calil Chaim. Tornara-se óbvio que a oposição tudo faria para derrubar Manoel Gomes Tróia da presidência. A acusação de que a locação da clínica fora feita de maneira irregular, ilegal ou arbitrária correu a classe médica. Nem na sua diretoria, Tróia conseguia apoio. Muitos anos depois, Moracy Souza de Arruda Filho falaria em arbitrariedade, não mais em ilegalidade:

– “(…) O arrendamento foi feito de uma maneira absolutamente arbitrária, porque, embora a prerrogativa legal existisse, por parte da diretoria, os cooperados não foram consultados. Esse foi um dos grandes motivos de instabilidade naquela época na Cooperativa”.1

Não importou, pois, que Manoel Gomes Tróia tivesse locado, para a UNIMED, um hospital que, ao ser inaugurado, teria capacidade de internação de cerca 120 leitos, numa transação “livre e desembaraçada”, sem dívidas a pagar. Não se admitia dar mais poder ao homem que, durante 16 anos, dirigira com mãos de ferro a Cooperativa dos médicos de Piracicaba. Era hora de mudar.

O advogado Antônio Orlando Ometto, que presidira a OAB-Secção de Piracicaba, viveu os últimos tempos da administração de Manoel GomesTróia, que o convidara a assumir a área jurídica. Amigo pessoal e cliente de Eudes de Freitas Aquino, o advogado passou a intermediar entendimentos, dado o acirramento da crise que, ainda outra vez, se encaminhava para decisão

do Judiciário.

– “Tentei diminuir a tensão. A solução teria que ser sempre através do voto”2, era como orientava indicava às partes em conflito, já antecipando a borrasca que aconteceria.

Manoel Gomes Tróia, no entanto, não recuou, apesar das pressões constantes. Nomeando, para diretor-clínico, o mesmo médico Renato Françoso Filho, deu ênfase às reformas do hospital. E, desafiando os opositores, esticou a corda das tensões. Nem o advogado Antônio Orlando Ometto conseguiu qualquer acordo ou mediação. Além de negar, à oposição, o pedido de convocação de uma assembléia extraordinária – onde os descontentes pretendiam anular o contrato de locação com a Clínica Santa Mônica – Tróia foi além: convocou o Conselho de Administração da UNIMED e, em reunião extraordinária, conseguiu a exclusão de dez médicos, entre os quais estavam os principais líderes que se opunham à sua administração. Foi no dia crítico de 27 de agosto de 1986.

A exclusão de médicos

O conflito estava posto. Para alguns médicos, havia arbitrariedades de Manoel Gomes Tróia e a locação do hospital tinha sido uma a mais. Para Tróia, as reações contrárias existiam “por parte de associados que possuem interesses antagônicos fora da UNIMED”.3 Fora isso que ele explicara aos membros do Conselho, que se reuniram, na sede da Cooperativa, às 8 horas daquele dia. Estavam presentes, além do presidente, os conselheiros Alcides Aldrovandi, Jurandir Ribeiro de Carvalho Filho, Mário Sérgio Caldana e Jussieu Roberto Fernandes Siqueira. Assessorando a diretoria, o advogado Reginaldo Fereira Lima, da Federação das UNIMEDs do

Estado de São Paulo, novamente convocado.

Na reunião, Tróia denunciou o que chamou de monopólios hospitalares, referindo-se a prática de, em alguns hospitais de Piracicaba, apenas os componentes de seus corpos clínicos poderem prestar atividade médica. Nesse sentido, ele justificou a assinatura do contrato de locação com a Clínica Santa Mônica, que, segundo ele, fora “recebida com júbilo pela maioria dos associados da UNIMED de Piracicaba, que passaram a contar com os meios para atender

os seus pacientes que necessitam de internação.” E relacionou os médicos que, “nas primeiras diligências do Conselho”, estavam “inequivocamente ligados aos interesses da atividade médica que se agrupou de forma hermética na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba, Instituto de Medicina Infantil S/C Ltda. e Clínica Amalfi S/C Ltda.”4 Eram os mesmos médicos cuja exclusão da Cooperativa ele pedia ao Conselho de Administração. Mas fazia a ressalva, procurando ser mais diplomático: “O antagonismo desses grupos médicos nada tem a ver com a

atividade hospitalar das instituições envolvidas, que continuam a merecer confiança da UNIMED.”5 A justificativa de Manoel Gomes Tróia era a mesma em cuja tecla ele vinha batendo desde a criação da UNIMED, só que, agora, servindo para a tentativa de silenciar os oposicionistas: por estarem vinculados a outras entidades, aqueles médicos estariam exercendo “atividade considerada antagônica aos objetivos da Cooperativa”, insistindo em afirmar que se dedicavam “ao ramo econômico da exploração da medicina com a finalidade mercantil.”

Os termos do documento enviado aos médicos foram duros e inequivocamente ameaçadores. Pois a decisão não se limitava apenas a excluí-los da Cooperativa. Soava como ameaça solta no ar: “Fica esclarecido que a exclusão ora votada não inibiria a que novas deligências (sic) fossem realizadas, no sentido de se deliberar sobre a adoção da mesma medida contra outros associados incursos na mesma hipótese.” A exclusão fazia com que os médicos “perdessem

a condição de sócios”, mas permanecendo as atividades relativas à “obrigações com terceiros por compromisso da Cooperativa, até a próxima assembléia geral ordinária.”6 Tróia apoiava-se em consulta anterior feita ao Incra, à Secretaria Nacional do Cooperativismo.

Por unanimidade de votos, o Conselho de Administração aprovou a exclusão daqueles médicos. Tinha sido, na verdade, uma declaração de guerra num clima hostil e em ebulição. A reação não tardou. Na própria administração da UNIMED-Piracicaba, houve protestos: renunciaram aos cargos os médicos Joaquim Fernando de Almeida e Gil Perches de Menezes, membros do Conselho Fiscal, e Marcelo Regis do Amaral, do Conselho de Administração.7 Joaquim Fernando fora eleito como 1º Tesoureiro e Marcelo Régis como 2º Vice-presidente, na eleição de 3 de março de 1986. Não seriam apenas eles: a pouco e pouco, Manoel Gomes Tróia começaria a ficar cada vez mais isolado na diretoria.

Médicos na Justiça

O previsto e previsível acabou ocorrendo, contrariando a sugestão do advogado Antônio Orlando Ometto que procurava orientar as partes conflitantes para a “solução do voto”. No dia 17 de setembro de 1986, os advogados Vanderlei Antônio Boaretto, José Francisco Sartori e Luiz Antônio Abrahão propunham, em nome de “Alcione Moya Aprilante e outros”, uma “Medida Cautelar Inominada”, requerendo a “medida liminar (…) no sentido de bloquear os reflexos” das determinações que excluíam ou notificavam médicos cooperados.8 “Alcione Moya Aprilante e outros” eram, na realidade, os dez médicos excluídos e mais 76 que haviam sido notificados por exercerem atividades em outros hospitais. Entre diversas alegações, os advogados insistiam em que as exclusões e notificações visavam anular ou impedir os votos dos médicos na assembléia da UNIMED, que haviam requerido a Manoel Gomes Tróia sem serem atendidos.

E, entre outras razões alegadas, juntavam documento provando que o próprio Tróia pertencia ao corpo clínico da Santa Casa de Misericórdia, indagando: “assim, como fica a própria situação do sr. Presidente da Entidade? Ele também se excluiu do quadro de cooperados da UNIMED de Piracicaba?” 9 Os requerentes pediam urgência à concessão da medida liminar. A decisão do Juiz de Direito Substituto da 4ª Vara Cível de Piracicaba, Mariano Cassavia Neto, deu-se no dia 19 de setembro de 1986: “indefiro, por inepta, a petição inicial dos autos de Medida Cautelar Inominada (….) e, sem julgar o mérito, julgo extinto o processo(…)”. 10

Pela decisão judicial, Manoel Gomes Tróia houvera cumprido os estatutos da UNIMED-Piracicaba, os “associados notificados de exclusão não perderam essa sua qualidade de associados”, restando à assembléia dos cooperados decidir, quando de sua realização, a respeito da possibilidade de votos.

A reação

Após a decisão judicial, todos os médicos “excluídos” recorreram da decisão do Conselho de Administração. Em documento registrado no 2º Cartório de Títulos e Documentos (“Cartório Krahenbuhll”), interpunham “recurso suspensivo” da decisão. Datado de 22 de setembro, o documento foi protocolado e registrado em microfilme sob o nº 27573, rolo nº 050. Não houve sequer tempo de Tróia responder. No dia 26 de setembro de 1986, o Jornal de Piracicaba publicava o edital de convocação que levaria ao extremo o conflito, colocando em risco a própria estrutura da UNIMED-Piracicaba.

Assinado por treze médicos11, o edital convocava os cooperados para a assembléia geral extraordinária que iria realizar-se no dia 6 de outubro de 1986, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, na rua D. Pedro I, nº. 781, com a seguinte ordem do dia:”a) Tendo em vista a mudança de objetivos sociais e outras infrações estatutárias, diante das locações realizadas com o ‘Hospital Santa Mônica de Piracicaba’, concluída à revelia de uma Assembléia Geral Extraordinária, os cooperados deverão deliberar sobre a destituição ou não do conselho de administração e conselho fiscal da UNIMED de Piracicaba. b) Ocorrendo a destituição ocorrida na Letra a, deverá a Assembléia Geral Extraordinária, desde logo, designar os administradores e conselheiros provisórios, até a posse dos novos, cuja eleição se dará no prazo máximo de 30 (trinta) dias.”

Nada havia de mais claro: o que se desejava era a destituição de Manoel Gomes Tróia. E este continuou reagindo, a seu estilo duro e monárquico. No dia 29, os atritos endureceram ainda mais. Além da publicação do edital, os médicos da oposição enviavam correspondência aos colegas insistindo para que participassem da Assembléia. Já se caracterizava, então, um comando de reação, na assinatura da correspondência: Alcione Moya Aprilante, Bernardo Aguiar Jordão, Ludmar Navajas Machado, Eudes de Freitas Aquino e, pela primeira vez, a assinatura de Moracy Souza Arruda Jr.12No mesmo dia, Manoel Gomes Tróia retrucou e, já estando claro que a oposição iria à assembléia para depô-lo, respondeu ao “recurso suspensivo” interposto pelos médicos excluídos. A resposta foi a que se esperava: o pedido foi indeferido, pois a discussão se fizera em torno de dois termos, “eliminação” e “exclusão”. Questão puramente jurídica, afirmava-se que eles tinham sido “excluídos” e não “eliminados”, sendo que, para “exclusão”, “não cabe qualquer tipo de recurso interno.”13

Pela imprensa, Tróia tentou esvaziar o movimento. Chamando a oposição de “médicos elitistas”, relembrava que a diretoria da UNIMED arrendara outros imóveis – citando sub-sedes em Rio das Pedras e São Pedro – sem que houvesse reações em contrário. E reafirmava: “locação de imóveis pela Cooperativa Médica é um ato meramente administrativo.” E, no dia 1º de outubro de 1986 ingressa com uma ação ordinária, assinada pelo advogado Reginaldo Ferreira Lima, em que pede “a decretação da nulidade da convocação e de eventuais decisões da suposta ‘assembléia’ designada para o dia 8 de outubro de 1986.” 14 A ação foi ajuizada perante o Juiz da 2ª Vara Cível, sendo juiz, Eduardo Velho Netto, proc. nº 1054/86.

 

Notas

1 A entrevista de Moracy de Souza Arruda Filho foi feita pelo jornalista Nelson Bertolini, em

15/05/2003. O autor deste livro não conseguiu, após diversas tentativas, entrevistar o dr. Moracy.

As declarações de que dispõe são transcrição parcial da entrevista dada àquele jornalista.

2 Entrevista de Antonio Orlando Ometto ao autor, 26/09/2002.

3 Cópia autêntica da ata da Reunião Extraordinária do Conselho de Administração da UNIMED-

Piracicaba, 27/08/1986.

4 Os médicos citados na ata e excluídos pelo Conselho de Administração foram: Alcione Moya Aprilante, Bernardo Aguiar Jordão, Bernardo Dias Aguiar Jr., Eudes de Freitas Aquino, Gilberto Stein Aguiar, João Stein Aguiar, Jacob Bergamin Filho, José Eduardo Mello Ayres, Ludmar Navajas Machado, Nelson Nakamura, Ariovaldo Antônio Vendramim.

5 Ata da reunião extraordinária, já citada.

6 Documento aprovado pelo Conselho de Administração, em 27/08/1986,conforme ata de reunião extraordinária, com indicação de que fosse enviado aos associados excluídos.

7 Conforme cópia do processo 1198/86, 4ª Vara Cível, 17/09/1986, fls.11.

8 Idem.

9 Idem, peticão inicial, fls.11

10 Idem, p. 352 e 353.

11 Assinaram o edital de convocação os médicos Alcione Moya Aprilante, João Stein Aguiar, Ludmar Navajas Machado, Enrique Crispin Inasaurralde Costa, José Eduardo Mello Ayres, Ariovaldo Antônio Vendramin, Cláudio Mahn, Álvaro Manoel Antunes, Cássio Camillo Almeida de Negri, Dorivaldo Custódio Barbosa, Luiz Roberto Cesar Cardia, Mauro Antônio Cabrini.

12 Cópia de documento em poder do autor.

13 Idem.

14 Cópia da petição inicial em poder do autor.

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