Fundo do Baú

Este artigo foi publicado no “Almanak de Piracicaba”, editado pelo jornalista Cecílio Elias Netto, do jornal impresso “A Província”, que circulou como suplemento do jornal “A Tribuna Piracicabana”. Para este projeto, foram elaborados vários fascículos ao longo do período de novembro de 1995 a agosto de 1997.

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Um dos objetivos destes fascículos – que serão transformados no “Almanaque de Piracicaba” para este fim de século — é o de recuperar a memória piracicabana através de subsídios que possam trazer alguma contribuição às atuais e próximas gerações. Quem somos, porque somos — uma busca no fundo da memória das pessoas para que tais subsídios contribuam para quem vier a escrever ou rever nossa história.

Estamos chegando ao final do século. De minha parte, fico surpreso — e, ao mesmo tempo, feliz — ao me dar conta de que já vivi mais da metade desse século. E que fui espectador, algumas vezes ator, quase sempre um observador e ouvinte do que aconteceu em minha terra. Lembro-me dos anos da II Guerra Mundial, do armistício. Meu pai tinha um bar na antiga Praça da Matriz, hoje Praça da Catedral. Era o Café Imperial, onde está atualmente, o Banco Sudameris. Lá nasci, lá vivi a minha primeira infância. E, daquelas portas e janelas, fui espectador privilegiado.

Havia, ao lado da igreja, um ponto de taxis, chamados então de “carros de aluguel”. Com aqueles “motoristas de carros de aluguel”, comecei a aprender coisas da vida. Lembro-me, por exemplo, de que, à porta do bar de meu pai, eu ficava ouvindo-os conversar, eles brincavam comigo e uma das brincadeiras tinha, na verdade, sentido filosófico, um sentido de vida. Quando alguma mulher passava, os motoristas me estimulavam a tirar o pintinho para fora do calção, mostrando-o à mulher passante, dizendo: “Olha aqui, a saúde da mulher.” Minha primeira noção de sexualidade foi, portanto, saudável, toda ligada à vida. (Na adolescência, em São Paulo, eu ouvia a cozinheira da pensão onde morei, uma negra gorda, dizer-me, ensinando: “Eu fico grávida todo ano, porque a gravidez faz a mulher mais forte, mais saudável.”)

A geografia de minha infância era bonita, tornou-se inesquecível. O jardim da Praça da Matriz foi derrubado pelo Prefeito Pacheco e Chaves, inteiramente reformulado, as árvores arrancadas. O povo protestava, Pacheco e Chaves dizia que estava tentando civilizar Piracicaba. O sonho dele era fazer de Piracicaba uma pequena Paris. E o jardim central deveria ser as Tulherias. No Hotel Central — onde, hoje, está um estacionamento suspenso e o Banco Luso-Brasileiro — havia uma sacada nos altos. Nela, vi, pela primeira vez, Adhemar de Barros, discursando em ano eleitoral.

A praça tinha vida e era, como predissera Castro Alves, realmente do povo, um espaço de lazer e de encontros, tão diferente desse local frio e suspeito em que se transformou. Políticos, estudantes, mães de família, aposentados, comerciantes, todos se reuniam na praça, como que uma escola onde as pessoas ensinavam e aprendiam umas com as outras. Havia bares e restaurantes: a Nova Aurora, onde está o Banco Nacional; o Giocondo, ao lado da Brasserie; o Senadinho, próximo ao Jornal de Piracicaba; o Café Haiti, na Galeria Brasil; a Leiteria Brasileira, ponto de estudantes da Agronomia debaixo do salão do Clube Coronel Barbosa; e, ao lado deste, A Baiana; e o Ernâni, vizinho ao Politeama; o Tanaka, que ficava ao lado da Tabacaria do Justo Moretti, na rua São José. E o Passarella, onde está o Banco Itaú. E o Lider Bar. O centro da cidade era uma festa, o coração de Piracicaba tinha alegria.

Nos anos 50, quando da primeira administração de Luciano Guidotti, ele resolveu presentear a cidade com o que havia de mais moderno à época: uma fonte luminosa. O povo, sempre sarcástico e crítico, não teve dúvidas e batizou a fonte com o nome de “Bidê do Bentão”, referência ao gordo e imenso Bento Dias Gonzaga, deputado estadual, herdeiro de Luiz Dias Gonzaga, um dos coronéis da política dos velhos tempos.

E os cinemas? Piracicaba chegou a ter, no final dos anos 50, nada menos do que seis cinemas: São José, Broadway, Palácio, Politeama, Colonial, Paulistinha. E, em 1964, eram sete, com a inauguração do Ritz, que foi destruído com a queda do Edifício Luiz de Queiroz, o Comurba.

Penso nessas coisas, com saudade de um tempo que se foi, ao constatar, cada vez mais, que as cidades perdem a memória. Nem mesmo a memória fotográfica sobrou, pois as fotos que existiram foram quase todas elas destruídas. As imagens ficaram na retina das lembranças. E é por isso que, angustiado, fico pensando em como seria fácil registrar o passado, deixá-lo de herança para o futuro. Bastaria uma simples lei, até mesmo ingênua: que, a cada demolição que se fizesse, houvesse a obrigatoriedade de fotografar o que se iria demolir. E as fotos ficariam em arquivos da Prefeitura. A infância das pessoas, assim, seria preservada. Pois os adultos passam pelos locais onde nasceram, onde brincaram, onde viveram a meninice — e eles não existem mais.

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