A descoberta do mundo

Foto: Jefferson/Olhares

Viver vive-se vivendo (3)

As primeiras imagens de Piracicaba- que se me grudaram na retina – são , pois, daquela esquina onde nasci e, neste ano de 2006 – já noutro século, o 21 – está o Banco Sudameris.

Havia um ponto de táxi, à direita, na rua Boa Morte. Do “Café Imperial”, é -me nítida a lembrança de homens engravatados falando sobre a Guerra, a II, que angustiava as pessoas. Tão longe daqui a Guerra, mas tão próxima – com os racionamentos de alimentos e bens, com o aumento da pobreza, o desaparecimento do trigo. Aqueles homens engravatados eram pessoas ilustres que iam comer, ao entardecer ou princípio da noite, o famoso “sanduíche de pernil” que Tuffi, meu pai, fazia como ninguém mais o repetiu.

E eram o doutor Juiz, o doutor Promotor, o doutor Delegado, advogados famosos como Jacob Diehl Neto, Jorge Coury, políticos como José Vizioli e Lázaro Pinto Sampaio; esportistas como Osires Tolaine, Júlio Nascimento,; maçons como o farmacêutico Abério Sampaio – nomes que me povoaram a infância, tornando-se fantasmas ainda vivos. Um deles, parecendo-me mais austero do que os demais, como que amedrontava as pessoas: Luiz Dias Gonzaga, líder político,coronel à antiga.

Eu sentia pena de um alemão que, no “Café Imperial”, tinha um cantinho onde instalara a sorveteria com a qual sustentava a família: seo Pink, Antenor Pink. Ele era gordo, vermelho, sempre de cara fechada e uma de suas filhas, Darcy, foi uma das belas mulheres a enfeitar-me a criancice. Nunca mais me esqueci do rosto de Darcy, as feições firmes e valentes, os cabelos castanhos, quase ruivos, que despertavam a atenção dos homens, moços e velhos, freqüentadores da sorveteria e do café. O seo Pink – ainda que o preconceito não fosse abertamente revelado – era visto com maus-olhos, “alemão batata, come queijo com barata.” Bastava ser alemão, para ser tachado de “nazista”.

Mais pena senti daquele homem grandalhão quando, de repente – eu teria uns quatro anos – me deram a primeira missão jornalística de minha vida, a de “correspondente de guerra”: eu tinha que espiar, por um buraco do assoalho, as reuniões que seo Pink fazia, no porão, com amigos que passavam a ser suspeitos de conspirar contra “os aliados”. Fracassei: os “nazistas” só falavam em alemão!

Parece loucura, mas me recordo dessas coisas todas. E de Monsenhor Rosa passando pelas ruas, o andar já lerdo e claudicante, saindo da Matriz para ir à Casa Paroquial, na rua 15 de Novembro, entre a Boa Morte e a Governador. Quase à frente da casa de Monsenhor Rosa, ficava a Escola de Datilografia de Dona Rosinha, no belo casarão de tijolinhos à vista, a escadaria enorme e, no térreo, a bicicletaria do Grisolia.

No mesmo quarteirão, o consultório do doutor João José Correia, o bonde passando pelas ruas onde eu brincava: 15, Boa Morte, naquele trecho da Moraes Barros. Ah! o bonde… Nele, meu pai me fazia dormir, sacolejando cantiga de ninar no passeio que era uma viagem ao país das maravilhas: da porta de minha casa até a Vila Rezende.

A Praça da Matriz parecia um bosque, jardim coalhado de árvores. Mas, no começo dos anos 40, o prefeito Jorge Pacheco e Chaves derrubou tudo para construir um outro. Homem do mundo, requintado, ele dizia querer “civilizar Piracicaba” e, em seus devaneios, o sonho de um jardim imitando o das Tulherias. Foi lá que o povo gritou e cantou – em frente ao café de meu pai – para comemorar o Armistício. A II Grande Guerra chegava ao fim. Eu tinha cinco anos. Piracicaba era o meu mundo. E não precisava nada mais do que ela para ser feliz. Parecia-me – e pareceu-me ao longo da vida – um presente dos céus, um buquê de flores. Nela, quis viver. E viver,vivi, vivendo. (Ilustração: Araken Martins.)

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