A HISTÓRIA QUE EU SEI (I)

As bombas que os japoneses, em dezembro de 1941, lançaram sobre Pearl Harbor caíram também, em forma de problemas, sobre a cabeça do engenheiro-agrônomo e cientista José Vizioli, prefeito de Piracicaba, tida como a quinta cidade do Interior do Estado de São Paulo. A “Noiva da Colina” era famosa por suas escolas, por sua representatividade política – desde a influência dos Moraes Barros, ainda nos primórdios da República – e por seu desenvolvimento agroindustrial. “Cidade das Escolas”, oficialmente o “Ateneu Paulista”, assim era conhecida Piracicaba, com o respeito que lhe era devido pelo alto nível pedagógico de suas escolas, principalmente a Escola Agrícola, o Colégio Piracicabano, o Colégio Assunção, a Escola Normal.

José Vizioli, antes de mais nada um técnico e um cientista, iria ver-se às voltas com a efervescência política, muito mais ideológica do que partidária, mesmo porque, em plena ditadura, os partidos políticos estavam proscritos, ainda que mantivessem a sua estrutura em plena clandestinidade. Os antigos perrepistas – do velho e poderoso PRP – continuavam perrepistas; os “integralistas”, seguidores de Plínio Salgado, continuavam integralistas. E uma nova escola política começava a se impor: o populismo de Adhemar de Barros, piracicabano nomeado interventor federal em São Paulo de 1938 a 1941, uma força que já se fazia conhecer por “ademarismo” .

José Vizioli era um engenheiro-agrônomo de renome, alto funcionário da Secretaria da Agricultura, no Fomento Agrícola. Estudara nos Estados Unidos e tinha idéias progressistas. Fora amigo do Tenente João Alberto, um dos criadores da Legião Revolucionária em 1930 e poderoso homem de confiança de Getúlio Vargas, e sua indicação à Prefeitura tivera o aval do Interventor Adhemar de Barros. Adquirira renome e respeito entre os produtores agrícolas – especialmente entre os usineiros, a quem salvara da falência – por ter descoberto meios de enfrentar a praga que dizimava os canaviais, o “mosaico”. Homem de pouco trato, infenso a articulações políticas, José Vizioli havia sido afastado da Secretaria da Agricultura porque, segundo ele próprio comentava, enfrentara a oposição da poderosa Família Prado, de Jaú, ao pretender o expurgo das sementes doentes do algodão. Mas, com Adhemar de Barros, José Vizioli fora convidado a assumir a Secretaria da Agricultura e, conforme confessava aos amigos, não aceitara o honroso cargo porque “precisaria oferecer um banquete a amigos e autoridades”, e não tinha dinheiro para isso …

Em janeiro de 1942, a situação política se complicava para o Prefeito José Vizioli. O Chanceler Oswaldo Aranha, em reunião de chanceleres das repúblicas americanas, fazia, em nome do Presidente Getúlio Vargas, a declaração de rompimento diplomático com Alemanha, Itália e Japão, os países do “Eixo”. A influência americana sobre o Brasil começava a manifestar-se, tomando claro que o país, finalmente, se alinhava aos Estados Unidos.

Foi neste ano, 1942, que a Coca Cola chegou ao Brasil. O Departamento de Estado desenvolvia todos os esforços para promover a sua política de ”boa vizinhança”. Beth Davis e Paul Henreid filmavam, na Baía da Guanabara, o filme “A Estranha Passageira”. Orson Welles chegava ao Rio de Janeiro, promovia o ator Grande Otelo como um dos grandes intérpretes internacionais, participava do Carnaval, do folclore carioca, buscando filmar “It’s all true”, que nunca se concluiu. Carmern Miranda, levada aos Estados Unidos, transformava-se na “brazilian bornbshell”, ainda que dançando conga e rumba. E as histórias em quadrinhos, os “gibis”, causavam sensação, sendo leitura obrigatória dos brasileiros, transmitindo-nos, juntamente com Hollywood, o otimismo e as excelências do “american way of life”: eram imperdíveis o Flash Gordon, Mandrake, Jim das Selvas, Batman, Super Homem, Zorro, o Fantasma, que se juntavam ao Mickey e ao Pato Donald e, logo depois, ao Zé Carioca. A revista “O Cruzeiro”, de Assis Chateaubriand, chegava a tiragens espetaculares, tendo como carro-chefe as reportagens de David Nasser e de Jean Manzon. E, no teatro, que ensaiava a sua profissionalização através de Ziembinsky, havia uma piracicabana que se transformara em grande sucesso nacional: Lyson Gaster. Em 1943, seria a vez de outro piracicabano, o historiador e jornalista Mário Neme, que, no “Grupo Universitário de Teatro”, dirigido por Décio Almeida Prado, alcançaria grande destaque com a sua peça “Pequenos serviços em casa de casal”, tendo Cacilda Becker como principal destaque.

Para José Vizioli, porém, na Prefeitura de Piracicaba, a situação estava dificil. Politicamente, ele enfrentava, nos bastidores, a influência dos dois mais poderosos líderes do município, Luiz Dias Gonzaga e Samuel de Castro Neves. Na verdade, José Vizioli era um “outsider”, o “italianinho”, que ocupava o espaço e o lugar que sempre haviam pertencido a famílias aristocráticas, os “quatrocentões” de sangue e de nascença. José Vizioli era um “estrangeiro” diante daqueles que o haviam antecedido ao longo da história piracicabana: os Duarte Novais, os Pacheco, os Moraes Barros, os Ferraz de Camargo, os Barbosa Ferraz, os Ferraz do Amaral, os Rodrigues de Moraes, os Dias Gonzaga, os Toledo, os Arruda Pinto. José Vizioli era o “italianinho”, e assim era conhecido, pejorativamente identificado.

O rompimento do Brasil com os países do “Eixo” levou José Vizioli – que não tinha habilidade política – a enfrentar mais outros dois problemas: os “integralistas” – que tinham o médico Antonio Cera Sobrinho, o advogado Jorge Coury, o comerciante João Vendemiatti, a família Vitti, como convictos e influentes partidários – que passavam a ser vistos como traidores, e os “socialistas” que, com o alinhamento do Brasil junto aos “Aliados”, acreditavam que os seus espaços se tomariam mais tranqüilos, mobilizados pelo agrônomo José Soubihe Sobrinho, pelo funcionário e intelectual Hélio Krãhenbüll, pelo comerciante Antonio Farhat, pelo professor João Chiarini, seus mais destacados ativistas. E, pairando sobre eles, a sombra e exigências do “ademarismo”, a grande força populista que Adhemar de Barros começara a plantar em São Paulo.

Eram turvas as águas em que José Vizioli nadava, com a oposição e o desprezo das elites aristocráticas e com a tentativa que se fazia para desmoralizá-lo. Nesse sentido, um episódio ficou marcante, de agressão e de desrespeito. José Vizioli tinha um defeito físico, manquitolando de uma das pernas, deficiência acentuada. Em Piracicaba, havia um panfletista de aluguel, disponível, conhecido como Belmiro Morro Grande (Belmiro Morais Lima). Certo dia, Belmiro cortou uma das pernas de uma galinha e a soltou na Praça da Matriz. A galinha mancava, numa perna só, e Belmiro a apontava, zombando: “Olha lá, o Zé Vizioli.” Silenciosamente, Luiz Dias Gonzaga, o velho coronel do PRP, estimulava a oposição a José Vizioli …

Na realidade, José Vizioli foi um intruso na velha política piracicabana, o primeiro a romper uma estrutura baseada nos grandes proprietários, na aristocracia rural, na poderosa herança do PRP. Com José Vizioli na Prefeitura, acontecia o início do rompimento de um ciclo profundamente conservador e elitista. Era um “italiano” ocupando o lugar de “brasileiros”. Era um homem do povo chegando ao espaço que sempre pertencera a determinadas elites. Tratava-se de um choque político, que não se pode prever tenha sido propositadamente idealizado por Adhemar de Barros, que indicou José Vizioli para a Prefeitura. O fato é que, naquele momento histórico, acontecia em Piracicaba uma mudança na hermética estrutura de poder que a vinha mantendo. Antes de Vizioli, a cidade e o município estavam transformando-se, mas a organização política, não.

Em 1942, a presença dos imigrantes estrangeiros era uma realidade palpável, uma força incontestável. E os “estrangeiros” – italianos, árabes, alemães et alii – eram discriminados. No entanto, o poder econômico já se transferia para eles: Mário Dedini, Pedro Morganti, Pedro Ometto, o crescimento dos Carmignani, dos Romano, dos D’ Abronzo, dos Cury, dos Coury, dos Abrahão, a presença influente dos Diehl, dos Krahenbüll. O Brasil se industrializava e Piracicaba, também. Iniciava-se o predomínio da indústria sobre a produção rural, o processo de urbanização. Prestes Maia, na Prefeitura de São Paulo, Henrique Dodsworth, no Rio de Janeiro, promoviam reformas urbanísticas revolucionárias. Em Belo Horizonte, o Prefeito Juscelino Kubitschek espantava o país com a construção da Pampulha, convocando Oscar Niemeyer e Cândido Portinari para levar à frente o audacioso projeto. Em Piracicaba, José Vizioli tentava – debaixo de todas as pressões ideológicas e políticas e cercado de preconceitos – dar ares de modernidade ao município. Não era um político, era um organizador – como o definia o ex-vereador Mário Stolf, seu parente e secretário particular.

Para se avaliar o nível do preconceito contra José Vizioli – por ser “italiano” e ter deficiência física – criou-se uma história maldosa, envolvendo pessoas com problemas físicos ou mentais: José Vizioli, com uma perna mais curta; Benedito Pires Camargo e Clarindo Vieira, com problemas também nas pernas, manquitolas; e Júlio Blums, que andava pela cidade, erguendo as mãos para o alto. “Zé Vizioli roda o pé e abre a cova; Belmiro passa e põe a semente; Clarindo vem atrás e cobre a cova; Júlio ergue os braços e pede a Deus que chova …” Era assim.

*CONTINUA

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