Velho amigo (Ideias)

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Depois que o Senhor chamou minha mãe de volta, vi meu pai durante bom tempo chorando pelos cantos da casa pedindo que ela voltasse. Se para nós foi difícil, para ele mais ainda porque ela era o seu esteio. Quando se apagou a luz que ofuscava todos os defeitos, ele se viu diante de si mesmo. Então, em companhia de dolorida solidão, fez a retrospectiva dos bons momentos e reviveu as marcas das horas de incompreensão, onde o orgulho e a grosseria prevaleceram. As mágoas escondidas nas dobras da alma não saram por si. Talvez para pedir perdão fosse um dos motivos que ele a chamava de volta; além da dor terrível que deve causar a ausência sem remédio de pessoa tão singular. Deve ser difícil ficar consigo mesma uma pessoa que acostumou atribuir à outra as causas de suas próprias frustrações, e que se achava forte porque a outra se fazia frágil.

Ele teve de aprender tudo isso sozinho. Parece que conseguiu. Minha mãe se foi para que ele pudesse encontrar-se consigo mesmo. E também nos deixou a sós com ele para que nos aproximássemos mais daquela figura cercada de autoridade e com a qual não sabíamos lidar direito.

Cada filho tem seu modo próprio de reagir aos acontecimentos familiares. Cada ser humano é único e os fatos repercutem na alma segundo a sensibilidade, o modo de ver a vida e o grau de ligação que cada um tem com os próprios pais. O que para um nada significa, para o outro pode ser um desastre. Isso ocorreu também conosco. Erram os pais que se gabam de terem educado os filhos de forma igual e de ter amado a todos do mesmo modo.

A imagem que tinha dele era de um pai bravo e mal humorado. Quando erguia a voz eu mijava nas calças. Não preciso dizer que nunca me abri com ele e nem orientações pedi, porque em várias coisas o meu jeito de ver a vida não tinha muito em comum com o dele. Também pouco me lembro de palavras elogiosas que ele a mim tenha dirigido. Conheci mais a cinta que o afeto. Com uma chinelada para cada, e sem interromper a reza, ele conseguia acabar com o menor indício de bagunça durante o terço à noite. Não atrapalhou, mas também não apoiou abertamente nossas iniciativas e cada um teve que arcar com as conseqüências de suas escolhas. Também não deixava nada azedar no estômago. Ninguém estragava seu dia sem a devida resposta.

Contudo, aos poucos fui conseguindo superar as barreiras que nos separaram por tanto tempo. Nos anos finais de sua vida conseguia conversar com ele durante horas, e pelas brechas dessa conversa passei a espiar sua alma, donde saiu também a minha. A figura daquele homem rígido e inatingível foi se esmaecendo a tal ponto que “mais que seu filho eu virei seu fã”. Tomei posse da minha e de nossa história. Além de casos memoráveis ouvi coisas que explicaram de mim para mim mesmo.

Aquela postura demais dura até consigo mesmo era defesa para o medo de não dar conta do recado. Mas ele deu. Sua personalidade firme, definida e transparente imprimiu-nos caráter, espírito de sacrifício, respeito aos semelhantes, simplicidade de vida e muita fé no PAI de todos nós com quem ele manteve sólida amizade; tanto que, mesmo envergado sobre sua bengala enquanto pode ia todos os dias até a igreja para vê-lo.

Aos 97 anos ele nos deixou. Estávamos em casa. Não deu tempo para dizer-lhe o quanto lhe era grato. Mas sei que um dia nos abraçaremos todos numa festa sem fim, porque não é possível que tudo se acabe por aqui. Então vou lhe dizer.

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