A banalidade do mal na cidade de São Paulo

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luiz_carlos_ruas-randomica104810Na noite de natal do ano de 2016, o vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas foi brutalmente espancado até a morte por dois homens jovens em uma estação de metrô no centro de São Paulo. O caso teve grande repercussão na imprensa e nas redes sociais, em virtude de sua brutalidade e da divulgação pública das imagens do fato gravadas por câmeras de segurança.

Acontecimentos dessa natureza não são inéditos em grandes cidades brasileiras, trazendo à memória outros fatos tragicamente violentos e covardes. Um deles foi o assassinato do índio Galdino por cinco jovens de classe média alta que o incendiaram em um ponto de ônibus na cidade de Brasília em 1997, alegando, como defesa, terem imaginado que se tratava de um mendigo. Outro fato semelhante foi o espancamento de uma empregada doméstica, supostamente confundida com uma prostituta, por cinco jovens também de classe média na cidade do Rio de Janeiro em 2007.

O assassinato do vendedor ambulante apresenta diversos aspectos perturbadores já apontados em reportagens e textos opinativos na imprensa. Dentre tais aspectos vale ressaltar dois deles, que apresentam uma relação de continuidade com episódios análogos. 1) A escolha da vítima de crimes cometidos em grupo não é meramente acidental, pois obedece a uma lógica precisa, para cujo conhecimento é essencial o conceito de estranho (unheimlich) formulado por Sigmund Freud. 2) A exemplo dos crimes já citados, contra o indígena e a empregada doméstica, os agressores disseram-se arrependidos após o fato, sendo que um deles, ao ser preso, declarou não ser uma pessoa má.

 

Freud e o estranho

De acordo com Freud (nos textos O estranho e Mal-estar na civilização), pessoas estranhas ou estrangeiras a uma dada comunidade são alvo de sentimentos ambivalentes que oscilam entre a hostilidade manifesta e a familiaridade inconsciente. Quando empregado como instrumento de análise social o conceito freudiano de estranho permite compreender que o preconceito e o desprezo contra pessoas que não se enquadram nos padrões de “normalidade” de uma dada sociedade encobrem certa identificação emocional que necessita permanecer inconsciente, sob pena de gerar forte crise de identidade.

Dessa maneira, quanto maior é a identificação inconsciente com estranhos ou estrangeiros, maior é a necessidade de ocultar tais sentimentos, o que explica o preconceito e as atitudes violentas contra aqueles que representam a fraqueza e o insucesso na assimilação de padrões sociais hegemônicos. A circunstância grupal, que favorece o enfraquecimento da autocensura individual, propicia a ocasião para que grupos de pessoas secretamente frustradas consigo mesmas combatam a suposta fragilidade alheia em vez de dedicarem-se a um processo doloroso de elaborar as cicatrizes de sua identidade pessoal fracassada.

Em situações grupais a autonomia individual é em grande parte anulada, o que favorece a canalização das pulsões agressivas reprimidas sobre indivíduos isolados ou grupos numericamente inferiores. É por esse motivo que as vítimas desse tipo de violência não são aleatórias, sendo aquelas que encarnam a fragilidade reprimida dos próprios agressores: homossexuais, empregadas domésticas, indígenas, e, no caso de Luiz Carlos Ruas, a figura do vendedor ambulante, homem que trabalha na rua em condições precárias. Considerando o repertório conceitual da psicanálise de Freud, a história das perseguições fascistas evidencia que a vítima da barbárie converte-se para os agressores em uma espécie de tela projetiva, na qual são projetados os resquícios de uma personalidade mal integrada.

 

Arendt e a banalidade do mal

A filósofa alemã Hannah Arendt (no livro Eichmann em Jerusalém) surpreendeu a imprensa mundial e igualmente o ambiente acadêmico ao descrever Adolf  Eichmann, oficial nazista e um dos grandes executores do holocausto judeu, não como um monstro moral ou um psicopata, mas como um homem comum, perfeitamente caracterizável como bom pai de família e cidadão exemplar no cumprimento de seus deveres. Em sua detalhada análise do julgamento de Eichmann, realizada em Jerusalém, em 1961, a filósofa explicitou o aspecto verdadeiramente perturbador da violência nazista, que consiste na desproporção entre a monstruosidade do assassinato em massa de seres humanos e a personalidade normal e desprovida de qualquer tipo de psicopatia, ou de aversão religiosa ou ideológica de teor fundamentalista.

Eichmann era um burocrata frio, eficiente cumpridor de ordens, perfeitamente substituível por qualquer outro membro da hierarquia nazista. A ausência de motivação patológica, ideológica, religiosa ou moral para os crimes cometidos pelo oficial nazista levou a filósofa a caracterizar esse tipo de violência como “banalidade do mal”. A violência fascista é de natureza banal, pois não se enquadra em modelos ou padrões específicos, e se alimenta do caráter supérfluo da vida na sociedade de massas. Embora Arendt tenha se dedicado a estudar fatos socialmente circunscritos e historicamente datados, seu conceito de banalidade do mal é perfeitamente aplicável a outras situações em que a vida humana é considerada supérflua e descartável a ponto de não despertar nenhuma empatia capaz de impedir a brutalidade das agressões.

Em casos de barbárie gratuita como a que vitimou o vendedor ambulante, compreende-se porque o agressor pode perfeitamente não reconhecer malignidade em si mesmo, pois a própria categoria do mal foi rebaixada a um patamar de banalidade, de tal forma que qualquer outra pessoa, psicologicamente saudável e comum, poderia fazer o papel do assassino. Luiz Carlos Ruas foi vítima de uma versão cotidiana da banalidade do mal nas grandes cidades brasileiras, cujas condições de existência são a redução da pessoa humana ao estado de simples “coisa”, mero objeto descartável e por isso insuscetível de despertar, nos agressores que a coisificaram, sentimentos de empatia ou compaixão.

 

A importância do pensamento

O cruzamento dos conceitos de “estranho” (Freud) e de “banalidade do mal” (Arendt) apresenta notável potencialidade explicativa para a compreensão de fatos trágicos como o crime cometido contra um vendedor ambulante no metrô da cidade de São Paulo. A vítima, ao encarnar certo tipo de estranheza social, que é tornada pretexto para a canalização de pulsões agressivas acumuladas, tem sua própria vida convertida em algo descartável e supérfluo. Se as condições para que o mal se torne banal são a disseminação da frieza nas relações entre humanos, a incapacidade de empatia diante da dor alheia, e o caráter irrefletido do próprio espírito e  intelecto, combater a violência do fascismo cotidiano requer contrapor-se ao estado geral de coisificação que transforma as relações entre homens em relações entre coisas.

Arendt chama a atenção para uma característica central do comportamento de Eichmann: a extrema superficialidade de uma mente inteiramente baseada em clichês. Diante dessa constatação, a filósofa (no livro A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar) enfatiza a necessidade de valorização do pensamento reflexivo como possibilidade de estranhamento do mundo e de uma possível ressignificação dos valores morais e da vida cotidiana como elementos contrários à banalidade do mal. Compreender que o fenômeno não se restringe a episódios isolados, estando relacionado com o automatismo comportamental e com a cegueira de espíritos perpassados por frieza e apatia, descostumados da atividade silenciosa e íntima do pensamento, será de vital importância para evitar a indesejável repetição de fatos dessa natureza.

A filósofa tinha perfeita consciência das imensas dificuldades enfrentadas por qualquer projeto educativo que vise a prevenir a disseminação da barbárie. Theodor Adorno, filósofo alemão contemporâneo a ela e igualmente familiarizado com o tema da banalidade do mal, em seu texto Educação após Auschwitz, definiu com grande propriedade a dimensão dos obstáculos que se opõem a uma educação voltada para a desbarbarização: “O perturbador – porque torna tão desesperançoso atuar contrariamente a isso – é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização”.

 

*Sinésio Ferraz Bueno é professor do Departamento de Filosofia da Unesp.

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