BENVINDA CRISE

Os textos de diferentes autores publicados nesta seção não traduzem, necessariamente, a opinião do site. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Ouço gente graduada e bem situada dizendo que se pudesse mudaria do Brasil porque não aguenta mais ver tanta roubalheira e coisa errada. Li na imprensa que executivos estão deixando o país por causa da crise. Em minha opinião que se mandem; quem pensa em comer a carne e deixar o osso para os outros não cabe no mundo novo que se aproxima. Aliás, nem para viver em sociedade serve. Nunca passaram por crise.

Talvez lá fora aprendam a não pensar somente em si e percebam que nações evoluídas e organizadas não caíram do céu. Exceto os EUA, que – sem desmerecer sua história de lutas e democracia plena – se serviu de meios escusos para expandir seu império a fim de manter a gordura de seu povo, países europeus, por exemplo, comeram o pão que o diabo amassou. Seus povos foram forjados no fogo da guerra, das ditaduras, opressões e invasões. Encararam pestes, fome e terremotos. Aprenderam com sangue e privações o valor do respeito mútuo, da justiça social, da igualdade de direitos, do respeito à natureza e às instituições.  Milhares de cidadãos deram suas vidas por um país soberano. Aí chega o folgadinho brasileiro querendo comer do bolo sem ter dado seu quinhão. Fácil se mandar para um país rico e com instituições bem definidas. Quero ver ficar aqui e enfrentar os que só querem saquear esse maravilhoso país. Corrupção existe no mundo inteiro, pois ela mora dentro do ser humano. Para dominá-la não bastam governos honestos. Faz-se necessário caráter e respeito por si.

Milito em organizações comunitárias desde os 20 anos. Na década de 1980 – durante administrações João-Adilson – fui morar num bairro cheio de favelas, esgoto a céu aberto, crateras nas ruas sem asfalto; escuridão, violência e abandono. Junto com um grupo de sonhadores e alguns moradores montamos uma diretoria de Centro Comunitário mesmo sem prédio e fomos à luta. Foram noites sem dormir; festas sem ir; reuniões familiares sacrificadas; medos, incompreensões e retaliações. Conseguimos, contudo. Perto do que era, nosso bairro virou primeiro mundo. Favela urbanizada, esgoto canalizado, ruas asfaltadas e iluminadas; ônibus chegaram, veio o centro comunitário, a creche, a unidade de saúde e mais adiante um ginásio de esportes. Até um varejão criamos já que o desemprego pegava. Foi mais de uma década de lida e centenas de assembléias com a comunidade; dezenas de reuniões com prefeitos, secretários e empreiteiros. Invadimos Câmara de Vereadores, gabinetes; usamos jornais, rádios e até manifestos fizemos.

Depois, buscamos bairros vizinhos para discutir problemas da região e engrossar a luta. Foi uma sequência de vitórias. Esse processo muito rico em participação popular se espalhou por todos os bairros do município e até uma Federação de Organizações Populares criamos. Nosso poder fazia sombra ao Legislativo. Depois do Executivo vínhamos nós, o poder popular, o segundo poder, não de Direito, mas de fato.

Desdenhado no mandato Thame, esse processo só foi retomado na segunda gestão José Machado, quando mais de mil pessoas – após longa trajetória de discussão nos bairros – passaram um domingo reunidas no Engenho votando as demandas do Orçamento Participativo. Foi um show de cidadania e participação.

Com o retorno dos tucanos tudo foi desmontado porque povo para eles é objeto, não sujeito. Preferem ir mais rápidos e errar sozinhos que devagar e acertar com o povo. Gente reunida os apavora. E assim voltamos ao cada um por si, a pior das crises.

Crise é momento de ruptura com o modelo insustentável de organização social que criamos. Precisamos de crises para mudar da conduta individualista e predatória que temos para a cooperação, a simplicidade de vida e respeito à natureza. Mais que gritar nas ruas é uma tarefa que começa dentro de cada um de nós, afinal não há governo, por mais forte que seja, capaz de fazer dum povo egoísta uma nação honrada.

Deixe uma resposta