Quaresmeiros

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sim-nao-icones-psd_55-292934257Não quero generalizar, pois conheço pessoas que não se enquadram no que vou dizer. Estou falando dos que fazem propósito de passar a quaresma sem cerveja, sem refrigerante, sem chocolate, sem doce, sem sexo e etc. Acho que essas atitudes são positivas para exercitar o autodomínio; fazem bem para o corpo, para o ego e dão a sensação de estar agradando a Deus; e quem sou eu para dizer o contrário. Quando a Páscoa chega, um misto de alegria e libertação se apossa da alma do crente, habilitando-o para a festa. Depois, tudo é retomado, então com mais gosto e um justificado senso de legitimidade; fica ainda a satisfação pela promessa cumprida.

Como não vou fazer nada disso, pois acho que Deus espera outra coisa de mim, vou dar meu pitaco. Apesar da reta intenção de quem faz, penso que se esses gestos não vierem acompanhados de mudança de mentalidade viram masoquismo.  Mudar de mentalidade, que é o mesmo que se converter – e isso não acontece num só golpe – exige rompimento com uma vida medíocre, sob cuja rotina a pessoa se esconde com medo de navegar em águas mais profundas. Ora, romper implica abandonar o ninho; é um salto no escuro. Contudo, embora “seja melhor perder um olho que como dois ir para o inferno”, é ‘prudente’ não arriscar, e de alguma forma ‘pagar’ com penitências essa dívida consigo e com os outros.

A autopunição tem também a ver com o conceito que se tem de Deus e no que se fundamenta a fé. Para aqueles que descobriram em Deus um Pai justo, amoroso e acolhedor as penitências que sentirem necessidade de fazer servirão como exercícios para corresponder a esse amor. “Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa”. (Adélia Prado, poetisa brasileira 79 anos). Simplesmente punir-se para ganhar proteção ou merecer o amor de Deus é próprio daqueles cuja fé segue regras do mercado, pois acham que tudo tem um preço, e fazem questão de pagar para se sentirem justificados por seus méritos e não pela misericórdia de Deus. Pessoas que assim pensam enquadraram Deus em seus conceitos e dele trazem uma caricatura, já que nunca se deixaram tocar por Ele, como muito bem disse Blaise Pascal – físico e teólogo francês (1623 – 1662): “Deus: uns temem perdê-lo, outros temem encontrá-lo”.

De que vale ficar algum tempo sem sexo e se recusar olhar para si mesmo a fim de se conhecer melhor, se assumir, cuidar das próprias feridas, vasculhar a alma e identificar os demônios que atravancam a paz, o relacionamento honesto e transparente consigo mesmo e com a companheira (o)? Não comer chocolate, e continuar um consumista voraz resolve alguma coisa? Ficar sem cerveja e descuidar da saúde, tornando-se um fardo para os familiares é saudável? Fazer sacrifícios e continuar comprando novo em vez de consertar o usado; produzir muito lixo; não ter verde em casa; jogar óleo usado na pia; penalizar o empregado; ignorar o vizinho, não se tocar com a situação dos outros; dar audiência ao BBB, às novelas e filmes violentos em vez de reunir a família para rezar e ler a Palavra de Deus? Adianta muito ficar sem comer carne e continuar aceitando uma Igreja morna que não converte ninguém; cheia de egos, divisões e fazedora de média com o poder; com bispo, padres e leigos que não põem a cara para bater, pois não ouvem e nem vêem os sinais dos tempos, que clamam por justiça e para que a Palavra do Senhor seja proclamada de cima dos telhados?

“Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (Mt 9,13).  

 

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