Retalhos da vida

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retalhos

E assim é. Nesta espécie de agonia quando o dia acaba, no entardecer que é uma metáfora da nossa vida, a finitude de todas as coisas. Lá se foi o sol, vem a noite e este manto escuro obscurece algo dentro de nós.

   Um tio querido me confessou tudo isso. O quanto sofria no anoitecer. A sombria passagem do dia para a noite era um ritual funéreo, rasgando-lhe a alma. E aos domingos, ao ouvir a música do “Fantástico” na tevê, sentia ímpetos de se atirar da janela do apartamento.

   O horário de verão faz o sol brilhar mais tempo e isso nos confunde um pouco. Os ponteiros do relógio avançam e a claridade prolongada altera nossa percepção. De qualquer forma, a vida avança mais do que o relógio e ninguém a detém por nada. Passo a passo, a vida vai em frente, independente do quanto conseguimos alcançá-la.

   Acompanhar até onde ela avança é tarefa hercúlea. Está sempre a muitas léguas de nós e penso que daí se originou a expressão “correr atrás do prejuízo”. Correr atrás da vida é algo estressante e infrutífero. Ou andamos com ela, a cada passada, no tempo e no espaço, ou estaremos eternamente defasados.

   A vida tem um compasso rítmico, uma sintonia própria, a regência correta e harmônica de cada momento e cada ação. Tudo nela se encaixa com perfeição absoluta e bíblica. Há tempo para rir e para chorar. Tempo para juntar e tempo de lançar fora. Tempo de odiar e de amar. Tempo para tudo.

   Tempo de ser criança, de ser jovem, de ser adulto. Tempo de casar e ter filhos. Ser pai e ser mãe, educar, deixar que os filhos sigam seus caminhos e façam suas vidas também. Mas não se afastem muito, por favor. Tempo de sermos avós, de brincar com os netos, pequenas e apaixonantes criaturas que povoam a nossa gentil velhice.

   Netos são o entardecer da vida e o alvorecer da esperança. Vendo netos florescerem em nossos braços, temos uma compreensão perfeita deste compasso, desta rítmica dança do tempo. Podemos pegar com nossas mãos a magia e a beleza do que criamos um dia. É de nossa linhagem e aí estão.

   Tudo isso representa retalhos lindos unidos por um fio de ouro, pedaços de sonhos, viagens, festas, família reunida em volta de uma abençoada mesa, brindes, risos, gente amada que já partiu e novos que chegam. As fotos estão pelas paredes e não nos deixam mentir. A vida passa, a vida passou. Um dia, aquele momento existiu para nós e para o outro.

   São estas peças em sépia que hoje se juntam novamente e se apresentam como um lindo quadro. Não apenas na memória, mas vívido para meus olhos, um eterno movimento de beleza e solidez que não cessa jamais.

   Estão por toda parte, sobretudo dentro do meu coração. Toda uma vida se foi e está impregnada de saudade, de gavetas arrumadas, de fotografias. Aquele sonho que não devemos perder dentro de nós, seja qual for. Viver numa praia, mudar de país, comprar um barco e morar nele, construir a casa mil vezes planejada, voltar a estudar.

   A faculdade da vida nos espera. Somos todos alunos, eternos aprendizes desta professora muito qualificada para ensinar. Nota dez.

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