Reflexões no meu outono (XXIV)

IdentidadeDurante a II Guerra Mundial – mais precisamente em 1943 – um aristocrata foi nomeado prefeito de Piracicaba. Era Jorge Pacheco e Chaves, “o doutor Jorge”, como o chamavam. Ou “dr.Punho de Rendas”, como diziam seus adversários. Na realidade, Jorge Pacheco e Chaves era um homem culto, refinado, de maneiras elegantes, polido. Muito rico, ele dizia: “Minhas heranças eu as gasto viajando pela Europa.” E, de lá, ele trazia lições, exemplos, inspiração.

Piracicaba vivia a grande transição provocada pela guerra e pela fortíssima presença de descendentes de italianos, de alemães e de japoneses, vistos preconceituosamente por razão da catástrofe mundial. Havia, então, os “aliados” contra os “inimigos”, Alemanha, Itália, Japão. O “doutor Jorge”  – homem de visão universal – tentou diminuir as tensões e se propôs uma meta: “civilizar Piracicaba”, então uma pequena cidade que começava a perder suas características. A grosseria, a desordem, a formação de guetos começavam a fazer sombras à verdadeira imagem piracicabana, terra de cultura e de civilidade, de artes e de convivência harmoniosa. Pouco o “doutor Jorge” conseguiu. Mas deixou sementes plantadas e um símbolo significativo: a reforma do jardim central, que ele pretendia fosse uma réplica das Tulherias.

Civilidade é atributo de povos civilizados. O oposto disso é a barbárie. Civilização e cultura são irmãs siamesas. O povo culto, civilizado tem modos de viver mais refinados, com relacionamentos também polidos. Não nos esqueçamos de que polidez, polido, polimento são palavras com a mesma raiz de política, “polis”. Cultura e civilização são a “Paidéia” dos gregos, a “Humanitas” dos latinos. Trata-se, em resumo, da formação e da educação integrais do homem e, por conseqüência, de uma sociedade humana.

Quando um povo perde o senso de civilidade, estamos diante de sua própria degeneração, que é a principal fonte de sua ruína. E isso acontece por descuido, por lentas e repetidas concessões, pelo silêncio dos bons, pelo descaso de classes dominantes. Em seu monumental livro “Os Miseráveis”, Victor Hugo alerta: “Os povos, como os astros, têm direito ao eclipse”. Piracicaba – em seu entusiasmo pelo fervilhamento econômico – não estaria, porém, em seu eclipse cultural? Não estaríamos apenas assistindo ao surgimento cada vez maior da barbárie e de bárbaros?

Não são necessárias grandes elucubrações ou estudos para se perceber a perda, cada vez mais acelerada, da civilidade, como que num confronto onde a polidez está sendo substituída pela grosseria. Basta estar no trânsito, em ambientes públicos, em ruas congestionadas por multidões apressadas, pessoas que se ignoram umas às outras. O desrespeito impera. Pessoas se atropelam, xingam-se e xingam, jogam lixo nas ruas, desrespeitam sinais e leis de trânsito, pisoteiam sobre as mais comezinhas regras de boa convivência e de atenção ao outro. O individualismo é brutal. A solidariedade começa a morrer.

Ora, uma das definições mais significativas de humanidade diz ser, esta, “uma fraternidade”. Se assim não for, o ser humano será apenas um primata diferenciado. Já está acontecendo esse retorno, numa sociedade “pós-humana”, o que nos empurra de volta ao primitivismo, agora “sui generis”: primatas com celulares, num mundo apenas digital. E, mesmo que se queira, é quase impossível deixar de pensar no filme – que parece ter sido realmente profético – “O Planeta dos Macacos”.

Poucas palavras e gestos demonstram um povo civilizado: obrigado, por favor, com licença, desculpe-me, bom dia, boa tarde, boa noite; um sorriso, um ceder lugar a pessoas mais idosas, mulheres, crianças; falar baixo, evitar barulho e ruídos desnecessários. Enfim, regras básicas de boas maneiras. Pois, em última instância, cultura, civilização, civilidade nada mais são do que polidez e boas maneiras.

Piracicaba está precisando, com urgência, de  ir em busca da civilidade perdida. Para q não cairmos no abismo da degeneração que, muito próxima, nos levará à ruína.

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