Reflexões no meu outono (XXV)

download (4)Na Idade Média, duas expressões determinaram o mais verdadeiro sentido da existência humana naquele período. E diga-se que, antes de ser uma era de trevas – como, até hoje, ainda se generaliza – a Idade Média foi um dos mais ricos momentos da história humana. Tanto assim que, ainda agora, estamos lá. Somos lá.

As expressões definidoras: “contemptu mundi” e “fuga mundi”. Havia o medo do e o desprezo ao mundo, na concepção milenarista de que tudo iria se acabar. E o medo fazia com que – em vez de enfrentar e viver – se fugisse do mundo. É quando começaram a surgir os mosteiros, conventos, lugares de recolhimentos, fortalecendo desejos nostálgicos do “jardim do Éden”, que tomam forma e conteúdo. Há medos grandes e pequenos, implícitos e explícitos. E a soma deles é responsável pelo “Grande Medo” que – este, sim – põe a humanidade nas trevas.

Não estaríamos, nós – no início deste terceiro milênio – já dominados por pequenos e grandes medos? Medo da insegurança, medo das guerras, medo da violência, medo do outro, medo do mundo e, por fim, medo de nós mesmos, fragilizados e sem rumo? Não haveria um susto contido, como um soluço preso no peito, na garganta? Condomínios fechados – criando ilusórias seguranças – não seriam conventos e mosteiros contemporâneos, outra forma de “contemptu mundi” e de “fuga mundi”?

Confesso ter dúvidas. Aliás, descubro-me, aos 73 anos, com tão poucas certezas que – às vezes – sinto-me frágil como criança, engatinhante num novo tempo. Mas não seria, este, o grande segredo que aproxima criancinhas e idosos: o susto do nada saber? Por isso, tornamo-nos assustados, velhos e crianças: tudo nos é desconhecido. E o desconhecido inquieta. Jovens são corajosos – mas andam acovardados – porque pensam apenas com os músculos. Como os touros. E as mulas.

Reflito, reflito e sinto-me obrigado a admitir que – poucas vezes, como agora – tanto pensei em Cristo. E, então, percebo, novamente, o porquê de ter-me deixado imantar por Ele, rendendo-me outra vez. Reconheço, enfim, que a sombra de Cristo continuou a meu lado mesmo quando me compliquei com racionalidades estéreis, nos conflitos e convergências entre fé, ciência, razão, religião. E – como iluminação milagrosa – entendo o porquê de ter-me rendido ao mistério da Eucaristia, apesar de tantas descrenças e dúvidas. Para mim, além de comunitária, a comunhão eucarística é íntima, profundamente pessoal. E, com sutileza, é o que fortalece a fragilidade. É, realmente, o “mistério da fé”.

Não mais consigo acreditar em soluções coletivas, comunitárias, universais. São, ainda, utopia, sonho pulverizado dos que têm medo de acreditar numa paz pessoal possível. Se não conseguimos impô-la ao mundo, é possível tê-la como plenitude pessoal, íntima, independente do outro. E, portanto, solitária. Por isso, é o homem solitário que pode entender, compreender, amar, suportar, tolerar o outro. A paz pessoal tem o poder de contagiar os que nos rodeiam. Mas é a solidão anterior e interior que prepara o homem para a comunhão com o outro.

A vida de Cristo – ressurgida, em mim, como luz – foi a da mais absoluta, completa, total, plena solidão. Ele coexistiu com tudo e com todos. Conviveu com poucos. Foi o homem só, que se fortalecia no recolhimento. E o maior dos tesouros que deixou, penso eu, talvez tenha sido o grande esquecido, especialmente nestes tempos ruidosos e ruinosos: a solidão.Que é mistério e riqueza totalmente interiores. Ele é a solidão. E pode dizer-se “o caminho, a verdade, a vida”.

D.Aníger Melilo foi o instrumento que me abriu à fé. Ele morreu antes de ver-me perdendo-a. Por mais de 20 anos, D.Eduardo Koaik acompanhou minhas lutas de negação e de procura. E, ainda vivo, ele pode ver o início de meu reencontro. Ainda caminho. Mas – na solidão espontânea – enfim, entendi. Para ter, é preciso, acima de tudo, ser. E não simplesmente estar.

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