Sesc Piracicaba recebe o espetáculo Inutilezas

Foto: Marco Terra Nova

Foto: Marco Terra Nova

“É preciso desinventar os objetos. O pente, por exemplo. É preciso dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia.” A frase, adaptada do livro Uma Didática da Invenção, de Manoel de Barros, é um dos muitos trechos da obra do poeta mato-grossense que estão na peça Inutilezas, um roteiro escrito em 2002 pela jornalista e atriz Bianca Ramoneda, reconhecido pelo próprio poeta como um trabalho “do maior acerto e do maior bom gosto”. No palco estão Bianca e Gabriel Braga Nunes, dirigidos por Moacir Chaves, e o será apresentado neste domingo, 16/4, no Teatro do Sesc Piracicaba. Os ingressos estão esgotados.

Inutilezas conta a possível história das memórias de um casal de irmãos que passou a infância num lugar chamado de “lacuna de gente”. Protegidos pelo abandono, fizeram da invenção suas ferramentas de pensar e brincar. E do que não serve para nada, sua matéria de poesia. A peça pode contar também a possível história de uma dupla de atores que se reúne para transformar poesia em teatro, num jogo de cena que aposta na força da palavra e no espírito lúdico. Experiente em levar à cena textos que não foram originalmente escritos para oteatro, o director Moacir Chaves concebeu uma montagem enxuta. No palco, dois atores interpretam o texto de diferentes ângulos, lembrando ora dois irmãos, ora um casal, ora o poeta.

“Manoel de Barros tem uma escrita inteligente, crítica e lúdica, ao mesmo tempo. É um prazer ouvir diariamente suas construções sonoras. (…) Temos, agora, basicamente, uma maior concentração na sonoridade do espetáculo.”diz o diretor.

No cenário de Fernando Mello da Costa, duas poltronas e gaiolas de passarinho sobre o chão de madeira. Pontuando os versos, entram intervenções sonoras criadas por Pedro Luís, um dos fundadores do grupoMonobloco e da banda Pedro Luís & A Parede, executadas ao vivo pelo músico Chico Oliveira.

A peça, segundo Bianca Ramoneda, é uma ode às coisas “que não servem para nada”, supostamente inúteis no nosso cotidiano e que, ressignificadas, transformam-se em matéria-prima da poesia, em beleza e alimento para o espírito. Essa “inutilidade” é também metáfora para falar do ofício do artista. Tanto o poeta quanto a peça propõem a inversão de uma chave: a de que tudo o que fazemos precisa ter um sentido utilitário.

Ao estudar a produção do poeta há 15 anos, a autora percebeu que havia uma espécie de diálogo entre um livro e outro. O roteiro criado por ela foi encenado na época e visto pelo poeta, que deu sua bênção, escrevendo: “Não estou acreditando no que vi! Um teatro verdadeiro. Não é declamação de versos. É uma representação da palavra. Com os personagens vivos e as suas contradições”.

O encontro da escritora com Manoel de Barros aconteceu em uma edição do extinto Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira em 1998 (2006), quando Bianca era estreante na literatura e o poeta estava sendo homenageado. Ela deu o livro de presente a ele e os dois passaram a trocar cartas.

“À medida que lia os livros do Manoel, ficava com a sensação de estar ouvindo uma conversa, como se os diálogos existissem, mas estivessem espalhados em vários livros diferentes. Marquei com inúmeros papeizinhos as páginas que endereçavam para outras páginas e assim sucessivamente. (…) Trabalhamos arduamente para fazer o desnecessário, como diria o poeta. E erguemos a peça”, conta Bianca.

A dramaturga e atriz ressalta que os poemas de Manoel são atemporais, universais e de qualidade inquestionáveis, capazes de renovar o sentido a cada leitura e criar novas conexões. “Num mundo desesperançado como o nosso, pautado pela economia, pela política, pela ciência e pelo pragmatismo, acho que é nosso dever puxar para a arte o lugar do encontro onde podemos perceber a realidade de outra forma. Mais lúdica, mas nem por isso mais frouxa”, diz Bianca.

Gabriel Braga Nunes também conta de suas impressões ao interpretar depois de 15 anos os diversos personagens possibilitados pela poesia do mato-grossense: “Manoel partiu, nós envelhecemos, mas os textos não. Revisitá-los agora é perceber diferente (…) Além disso, a peça não tem personagens definidos, então pode ser feita por qualquer pessoa em qualquer momento. Manoel situa a gente. Tem que olhar de tempos em tempos pra não sair da rota. Me animou a ideia de revisitar o tema tanto tempo depois. Afinal, 15 anos é a idade em que se deve assumir as irresponsabilidades.”.

Sobre a morte do poeta, ocorrida em 2014, aos 97 anos, Bianca o homenageia: “Existem muitas peças dentro de Inutilezas e é por isso que estamos aqui, nos reencontrando. A mesma equipe de 14 anos atrás, com uma integrante a mais: a saudade do poeta. Repetir, repetir, até ficar diferente’, Manoel ensinou. Ao repetir, percebemos que somos outros e nossa peça também. Inutilezas, hoje, conta a possível história do reencontro de artistas que um dia montaram uma peça e precisam testar seus deslimites por receio de amanhecerem normais”, finaliza.

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