Dona Cigarra e Madame Formiga no mercado

Dona Cigarra e Madame FormigaUm dos mais fascinantes estudos – diante do qual me debrucei, ao longo da vida – refere-se à evolução histórica, origens e percepções filosóficas em relação ao trabalho. Desde o texto bíblico da expulsão do Paraíso – “e ganharás o pão com o suor de teu rosto” – o trabalho humano caminha entre a maldição e a bênção, oscilando entre o apenas humano e o divino. Ao longo dos séculos, no entanto, não houve grande e reconhecido pensador que não reconhecesse a dignidade do trabalho na vida humana, desde que trabalho digno, respeitável, livre e honrado.

Longe ficaram os tempos em que se diferenciava, por exemplo, o trabalho manual do intelectual, ou artes mecânicas de artes liberais. Há uma observação secular de Giordano Bruno que sempre me impressionou como síntese, talvez, de um confronto entre mundos que nunca foram distintos: “A providência dispôs que o homem se ocupe na ação das mãos e na contemplação do intelecto, de tal maneira que não contemple sem ação e não opere sem contemplação.” A exploração do homem pelo homem é outra história e, talvez, Adam Smith – atualmente em desastrado processo de recuperação por desesperados neoliberais – possa explicá-lo, já que o tema atravessa milênios, da escravidão ancestral à atual escravidão branca ou disfarçada.

Como maldição, o trabalho não é esse vale de lágrimas por si mesmo, mas pelas condições sociais e contextos históricos. Nietzsche chega a revelar toda a sua fúria diante do trabalho incessante – tendo-o como vício em especial dos Estados Unidos – em prejuízo da espiritualidade, da alegria e da contemplação, que ele considerava ser própria do ser humano. Há teorias sem fim, muitas conflitantes, mas todas reveladoras da vocação do homem para criar, fazer, realizar, produzir, como se repetisse o que os fundadores da Patrística pensavam do trabalho: através dele, o homem continua, de algum modo, a obra de Deus. Mas com a sábia advertência: o trabalho não é um fim em si mesmo, mas um meio. A questão está no próprio homem responder a que fim se destina o trabalho como meio.

Os tempos de aparente vitória do neoliberalismo – que começa a morrer exatamente onde nasceu, Estados Unidos e Inglaterra – chegaram a decretar a morte da história, conforme afirmou, pedantemente, aquele filósofo nipo-estadunidense cujo nome nunca consegui guardar, acho que Fukuiama ou algo assim. A história é um processo contínuo e ela se renova também nas novas relações entre capital e trabalho, entre o liberalismo econômico decadente e o ressurgimento de intervenções sérias, decentes, honestas e necessárias do Estado na economia, como Barack Obama está propondo nos Estados Unidos já sendo chamado de comunista. Basta observar a má fé: quem trata alguém como comunista, querendo xingá-lo, nem sequer sabe o que é comunismo; quem defende o Estado mínimo, com medo de um Estado forte, revela a ignorância e o medo de perder privilégios que se esboroam por si mesmos.

Hoje, o trabalho, na realidade, não tem dignificado as multidões de trabalhadores, de todos os níveis e categorias, incluindo intelectuais e artistas. A economia transformou o homem em objeto dela mesma e a palavra entretenimento – com todas as suas ramificações includentes de sexualidade desbragada, de ambições sem limites, de licenciosidades plenas – é a isca para tornar a escravidão moral mais branda. Os romanos já sabiam disso e, ainda ontem, referíamos ao pão e circo, que se há de fazer?

No Dia do Trabalho e do trabalhador e nesses tempos caóticos, volto a reportar-me a uma das mais notáveis comparações, em meu entender, que interpretam o nosso tempo, a perda de valores, de referenciais, de balizas, a malandragem vencendo a meritocracia, algo de que políticos se vão tornando paradigmas exemplares. Falo ainda da fábula da formiga e da cigarra, do imortal La Fontaine, segundo versão que correu há muito tempo na internet. Vamos lá.

Como sempre, a formiguinha, toda confiante e temente às leis de Deus e dos homens, trabalhava incessante e sacrificadamente. E, como sempre, a cigarra continuava a sua vida desregrada, malandra, irresponsável, como se visse nos corredores dos palácios oficiais de Brasília ou tivesse mandato eletivo. E assim ia a vida de ambas: a formiguinha trabalhando, a cigarra divertindo-se mas, em horas de apuros, indo-se em busca do apoio da leal amiga, Dona Formiga. Até que chegou o Inverno rigoroso, Inverno de crise e de confusão. E, em certa madrugada, a campainha da formiga tocou e ela intuiu: “É a minha amiga cigarra, a irresponsável, com fome e com frio. Vou lá atendê-la.” E era mesmo a cigarra. Mas só que Madame Cigarra estava numa limusine, aconchegada com riquíssimo casaco de pele, coberta de jóias, alegre e faceira, explicando-se: “Eu vim aqui, amiga formiga, para me despedir. Acontece que, numa das minhas farras, encontrei um amante francês e estou indo embora com ele, morar em Paris.”

Antes de despedirem-se, a Dona Formiga de nossos tempos globais pediu à amiga Madame Cigarra, vencedora nas malandragens de economia de mercado: “Já que você vai a Paris, amiga, você poderia fazer-me um favor?” Toda feliz, Madame Cigarra se tornou ainda mais solícita: “Claro, amiga, o que você quiser.” E Dona Formiga – mãe de família, laboriosa, honesta, cansada da luta – pediu: “Se você se encontrar com o tal La Fontaine, faça o favor de mandá-lo à puta que o pariu.” E bom dia.

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