Lei do Silêncio e falta de decoro

Lei do SilêncioSerá absolutamente falta de decoro e de pudor se vereadores de Piracicaba votarem alterações na chamada Lei do Silêncio. E confesso, de minha parte, não poder acreditar que uma Câmara de Vereadores que agasalha médicos, profissionais liberais responsáveis, pessoas decentes e civilizadas participe de uma farsa que, acima de tudo, é uma demonstração de incivilidade e de desrespeito. Será como ir na contramão da nova história que começa a se escrever no mundo, nas cidades mais civilizadas e dignas: a história do resgate ao pudor, ao decoro, ao respeito, à dignidade das pessoas. E, nesse resgate, a valorização do silêncio é um dos pilares mais sólidos e necessários para o retorno a um humanismo mais digno.

Quem está interessado no barulho, na farra, na algazarra, no ruído galhofeiro, gratuito, desrespeitoso, a não ser os que nutrem objetivos nem sempre decentes e honestos? Mesmo os que se chamam líderes de igrejas – a maioria delas não passando de seitas e pastores, muitos deles, nada mais do que comerciantes da fé – não têm o direito, não apresentam justificativas racionais e nem motivos decentes para se aproveitarem do barulho em benefício próprio e de seus interesses. Igrejas, cultos, templos, na verdade, são e sempre foram espaços de um tesouro que é como que uma dádiva: o silêncio. Em todos os tempos, os corais, órgãos, músicas sacras pareciam render graças ao silêncio do recolhimento, das preces, da oração, da reflexão. O poeta Testeegen escreveu e deixou como lição: “Os que trazem Deus em seus corações são reconhecidos pelo silêncio.” A partir dessa premissa, há que se concluir que pastores escandalosos, com gritarias em suas garagens e templos improvisados, com cantorias carnavalescas não “trazem Deus no coração”.

O mundo, repetimos, está em busca de suas próprias raízes humanísticas sepultadas, ao longo do tempo, pelo imediatismo, pelo voluntarismo e ganância de grupos e de pessoas. Os meios de comunicação televisivos especializaram-se em ensurdecer telespectadores com propagandas atordoantes, que servem, mercadologicamente, para impedir a reflexão, o raciocínio, levando a impulsos precipitados. O barulho faz parte da guerra; o silêncio, da paz.

Antes de se flexilibilizar a Lei do Silêncio, necessário seria – e os senhores vereadores deveriam pensar nisso em benefício da comunidade – radicalizá-la, estabelecer a tolerância zero para o que acontece na cidade: bares que montam palanques para apresentações musicais ruidosas, motos e carros com escapamentos propositalmente barulhentos, além dessa mania ridícula, despudorada e indecorosa de motoristas circularem com altofalantes com som máximo, ensurdecedor.

Ninguém está pretendendo se confunda a Lei do Silêncio com Lei do Mutismo, pois mutismo e silêncio têm dimensões diferenciadas: o silêncio é como que o prelúdio para uma abertura a reflexões reveladoras; o mutismo é a recusa, o impedimento para qualquer revelação. O silêncio permite a abertura a uma passagem; o mutismo é obstrução. Os grandes acontecimentos ocorrem no silêncio; o mutismo os oculta; o barulho destrói e corrompe, deprecia e degrada. A vida humana é plantada no silêncio do útero; a semente germina no silêncio da terra. No entanto, as bombas e as guerras se fazem com barulhos e estardalhaços, sinais de morte. O barulho mata a alma. Lentamente.

Os vereadores de Piracicaba não podem compactuar com essa falta de decoro, com o despudor com que se pretende abrir espaço a ruídos ensurdecedores, seja em nome da farra simples, da orgia banal, seja em nome de qualquer deus, especialmente o deus de homens que, travestidos de pastores – e há exceções, obviamente – se tornaram verdadeiros gigolôs da fé, gigolôs do barulho insensibilizante. A Câmara de Vereadores não pode ser comparsa desses gigolôs da esperteza, em prejuízo de um povo que precisa de paz, de serenidade, de tranqüilidade e de silêncio para tentar um reencontro consigo mesmo. Piracicaba, em nome sei lá de que progresso, está indo, aceleradamente, na contramão da história, nós que fomos, no passado, pioneiros e exemplos de cultura, de sensibilidade, de arte e refinamento.

Temos que confiar haja, na Câmara, vereadores dignos e com sensibilidade para reagir a essa falta de decoro em relação a um dos direitos mais nobres da pessoa humana: o direito ao silêncio. Se uma minoria apoiar a falta de compostura, seja ela vista e tida como indecorosa e despudorada também. E que os defensores dessa abertura ao silêncio se lembrem de que apenas precisam do barulho aqueles que não têm o que falar. Dizia o filósofo Wittgenstein: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar.” Não se pode falar em barulho como valor, em gandaia como princípio, em ensurdecimento como proposta. Que se cale, então, sobre o direito ao barulho. Bom dia.

Deixe uma resposta