Censura não se perdoa

CensuraA imprensa alinhada ao tucanato tem procurado confundir o povo brasileiro em relação ao projeto – aliás, iniciado com Fernando Henrique – que versa sobre direitos humanos. Um dos pontos farisaicos, apontados por essa imprensa, é o que diz respeito ao que chamam de “controle dos meios de comunicação”. Não é verdade. As propostas tentam abordar os abusos e exageros cometidos, impunemente, pelos veículos eletrônicos, rádios e tevês, que são concessões do governo e, portanto, do povo. Não há donos de rádios e tevês, mas concessionários, que precisam responder pelo mau uso que fazem de suas concessões. Os chamados veículos de comunicação massiva podem se tornar armas explosivas até mesmo contra os valores democráticos. E têm sido usados muito mais em benefício do mercado do que da população. O povo tem o direito de exigir respeito.

Os berros e urros hipócritas do PSDB precisam ser enfrentados e repelidos, pois são falsos. Aqui mesmo em Piracicaba, o PSDB se tornou campeão da censura, chegando até mesmo a impedir a circulação de um jornal, O Democrata, além de censura à Tribuna e, já na candidatura de Barjas Negri, censurando o Jornal de Piracicaba, que aceitou a mordaça cordialmente. O receio dos tucanos era, à época, de que a minha liberdade de pensar e opinar prejudicasse a candidatura tucana, que tinha um santo de barro carregado em andores festivos. O jornal não era meu e, calejado com ditaduras, escrevi sobre pizza, para não dar o prazer da censura a tiranetes de província.

Meu dever é relembrar fatos, para que se não repitam. Na noite de 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira – há 42 anos – este país caiu nas trevas do AI-5. Era a ditadura oficializada. Não sei onde – quando chibata e coturno se uniram – estavam os novos e atuais detentores do poder de Piracicaba. Muitos, talvez, ainda engatinhando; outros, concluindo cursos ginasiais e colegiais; alguns, deixando fios de barba crescerem-lhe nos rostos imberbes, fingindo ser adultos. E preparando-se para os tempos de oportunismos e covardias, para o uso da futura democracia em favor de si mesmos.

Naquela noite funérea de 1968 – meu quarto filho prestes a nascer – eu estava no comando de “O Diário”. Lutando. Era uma redação de moços apaixonados pela liberdade. O AI-5 roubou-nos o solo sob os pés. Na edição de 14 de dezembro, desafiando a censura militar, escrevi dois artigos: um, de opinião pessoal; outro, em editorial, com o título “O jogo interrompido”. Era o dever do protesto.

No domingo, 15 de dezembro, ainda a indignação, o protesto parecendo vir-me das vísceras. Temendo pelo artigo, os redatores sugeriram-me reconsiderá-lo, pois a violência do AI-5 espancava o Brasil. Entendi a cautela deles e tomei a decisão que se tornaria histórica, fazendo, da imprensa piracicabana, a primeira a enfrentar a ditadura de peito aberto: as principais colunas de “O Diário” saíram em branco. E Piracicaba viu o branco do protesto bem antes de “Estadão” e “Jornal da Tarde” driblarem a censura com versos de Camões e receitas de bolos. Até nisso, Piracicaba foi pioneira, com o primeiro jornal a, ostensivamente, enfrentar a censura dos militares.

Na segunda-feira, 16, fui, outra vez, chamado ao 5º G-Can de Campinas, submetido à prepotência do então coronel Cerqueira Lima e do truculento tenente Argus, um dos caçadores, mais tarde, de Carlos Lamarca na Bahia. O delegado de Piracicaba Joseph Cella estava presente. Os militares exigiam, de mim, a auto-censura. Não aceitei. Sugeri nomeassem Joseph Cella como censor. Recusaram-se: “Você é o responsável diante do AI-5.” Recusei-me à auto-censura, respondi até o fim e paguei o preço com processos, detenções, perdas pessoais e familiares. Houve o que Garcia Marquez contou depois: “… a censura obrigou a imprensa a escrever de viés.” Gustavo Alvim relata parte dessa história no livro “Um jornal de causas”.

Piracicaba está inscrita nos anais da história da liberdade deste país. Antes de coronéis e alcaides tornarem-se adultos, esta terra já testemunhava seu amor à democracia, ao estado de direito. Políticos e grupos partidários – quando propõem a censura ou outras formas de restrição à liberdade responsável – não merecem respeito. Hanna Arendt ensinou: “compreender não é perdoar”. O povo brasileiro, em espírito de reconciliação, até pode compreender torturas nas masmorras dos militares. Mas jamais irá perdoá-las. É possível perdoar Hitler, mesmo compreendendo-o? A violência não tem grandeza.

A censura avilta quem a promove. E destrói quem a aceita. É nela que se gera o ovo da serpente. Calando vozes discordantes, o poder impõe o discurso único, passo inicial para outros métodos abomináveis: a violência econômica, da chantagem, da manipulação. Com a censura, a violência fica oculta. Cortam-se idéias; exigem-se cabeças, cargos. Exercem-se pressões econômicas, publicitárias, negociam-se benefícios. Divide-se o espólio democrático em “ação entre amigos”. Espalha-se o medo. Mente-se. Difama-se. A serpente gera o ovo nos bastidores. Pois o público amedronta.

O dano maior já aponta o nariz. Chegou antes do esperado. A jornalistas, dá-se a imagem de cães que ladram. Mas é preciso cuidado: há os que ladram em defesa de seus donos; há cães que ladram em defesa da comunidade. O tempo mostra. A censura não vem do projeto de direitos humanos, ela já existe nas pressões econômicas, no conluio entre empresas jornalísticas, empresários e políticos. O maior exercício da liberdade acontece nos pequenos veículos, de cidades pequenas, de bairros e, agora, na internet. O silêncio da imprensa diante de tantos escândalos é censura auto-imposta, interesseira e, por isso mesmo, desprezível. Bom dia.

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