Natal e renascimento

Natal e renascimentoAo começar a escrever, tentei represar emoções. Pois, antes, eu tomara uma inesperada decisão que desejo seja irreversível: a partir de agora, tentarei tudo seja, em minha vida, uma primeira vez. Ao acordar, meu primeiro amanhecer. Ao dormir, meu primeiro adormecer. E, no amor, cada vez será minha primeira vez de amar. Então, deixarei de ser tolo acreditando que as coisas apenas se repetem, pois isso não é verdade. Tudo deve ser único, inimitável, irrepetível. É tolice transformar em banal o que é singular. E, em vulgar, o que é feito de filigranas de magnificência.

Não existe um ontem. Há a continuação dele, a que damos o nome de hoje. Por isso o Natal passado não acabou. E nem a emoção e o susto daquela primeira chuva que tomei no quintal de minha infância, sentindo-a como bênção na nudez de meu corpo de menino. Houve outras vezes, sei que houve. Mas não me lembro delas e agora sei a razão: eles, banhos de chuva que tomei em plena nudez, foram apenas a continuação do primeiro. Eu é que não percebera esse milagre, o “mysterium tremendum”, de tudo ser único, original, inimitável mesmo quando se repete.

Comecei com o abrir matinal de minha janela. Pensei que a paisagem fosse sempre a mesma: o jardim, as flores, o talude coberto de plantas, primaveras escandalosas esparramando-se, borboletas voando, passarinhos fazendo festa. E não é assim. Cada manhã é uma primeira vez. Pois é o olhar que sabe das coisas, não apenas os olhos que, quase sempre, olham conforme a razão. Que se deixe o olhar caminhar sozinho e, então, ele enxerga o que existia e não se vira antes. É o mesmo céu, mas não é o mesmo. Cada olhar é uma primeira vez. E a flor da alamandra era a de ontem mas não era a mesma na sua continuação para o hoje. Antes, eu a olhara pela primeira vez e, se olhasse pela segunda, eu a veria da mesma forma. Depois, olhei-a novamente pela primeira vez. E ela era a mesma, mas sendo outra.

Minha mulher entendeu depressa. Eu a olhei pela manhã e foi a emoção de uma primeira vez: os olhos verdes-caramelados pareciam os mesmos mas não eram, pois era outro o esverdeado. E eu a olhei à tarde: e foi pela primeira vez. A curva dos lábios era a mesma de antes, mas não era a mesma que o olhar enxergou. E é assim com o tato, com o perfume, com o sabor. Nada se repete, pois é o único que apenas continua. E, sendo único, sempre é uma primeira vez. Sei lá se me faço entender. Mas não estou dizendo de entender, nem de compreender, nem de pensar. Digo de sentir. Ou de apenas contemplar.

Pois assim será este meu Natal, Natal que me ofereço a mim mesmo, a descoberta de que ele é o mesmo de minha infância, aquele que me marcou, o primeiro que existiu na história de minhas emoções. Naquele Natal, não foi o Menino Jesus quem nasceu. Fui eu, a criança nascida naquela noite inesperada em que – dormindo, agitado, à espera do milagre de Natal – vi um vulto colocando um presente aos pés de minha cama. Era meu pai e o presente, ele o fizera com suas próprias mãos de artista madeira: um caminhãozinho e um cavalinho de pau.

Então, entendi. O menino santo, o menino sagrado, o menino bendito, o menino que era festejado na noite de Natal – esse menino era eu. Pois meu pai não fora levar presentes para Jesus. Meu pai me santificara com seu amor. Portanto – por que, meu Deus, não entendi antes? – eu fui consagrado pelo amor de meus pais. Para eles, naquele Natal, nascia eu. Foi a primeira vez, o primeiro Natal. E ele continuou tanto e tanto nas minhas lembranças que, agora, entendi: a primeira vez é única. E será eterna, se, em cada dia da vida, soubermos repeti-la no sagrado do que significa.

Neste Natal, renasço eu. Para mim mesmo. Pedindo ao outro menino, Jesus, que me ajude a manter o olhar limpo de quem haverá de tudo ver – promessa que me fiz – tudo com o deslumbramento da primeira vez. Quando a noite de Natal chegar, irei ganhar o presente que me reservei como tesouro eterno: um cabo de vassoura para ser o cavalinho de pau daquela primeira vez. Sinto que as mãos de meu pai o abençoaram por mim. E para mim. Bom dia.

Deixe uma resposta