Ponte assassina

Ponte AssassinaPrometi-me não mais passar pela ponte do Mirante, tanto se me confrange o coração ao ver a monstruosidade que lá se constrói, uma outra ponte, a ponte assassina. Aliás, já quase não mais saio de meu recolhimento, pois cada olhar que estendo à cidade vejo a devastação, a morte de valores e de belezas, como se os cavaleiros do Apocalipse não conseguissem se deter em sua ânsia de destruição, de morte, de apetites econômicos. A nova ponte, um nome já lhe dei e não me importa que outros nomes venha a ter, que serão, todos eles, falsos, prenhes de uma maldição que paira sobre esta cidade nos últimos anos. Pois, quando há maldições sobre governantes, elas se esparramam em direção a seus governados. Estamos assistindo a esse rosário de tragédias que ainda não aparecem, mas que contaminam almas e espíritos.

O nome da ponte é simples, trágico, prenhe da maldição: Ponte Assassina, como assassinos morais são seus autores, entre os quais um deles que me deixa espantado, perplexo, abismado, um artista que parece ter vendido sua alma aos tais empreendedores que, por definição, são pessoas sem alma. Refiro-me a João Chaddad, meu espanto, minha decepção, minha tristeza. Como pode um homem com tal alma artística, com uma sensibilidade que era até comovedora, ser comparsa e cúmplice de tantos crimes ambientais? Pois a Ponte Assassina está matando, lentamente, uma das mais belas e lendárias paisagens de Piracicaba, a primeira das Ilhas dos Amores. É crime hediondo que, por isso mesmo, carrega maldições. Depois de pronta, cada piracicabano que por ela passar estará, no fundo da alma, tremendo de medo de que ela caia, de que o desastre chegue, de que a maldição dos deuses desabe sobre inocentes. Aquela ponte mata a Ilha dos Amores mas os verdadeiros criminosos não sabem que a natureza e a história se vingam e, quando chega a vingança, nem mesmo os cavaleiros do Apocalipse escapam.

É uma cidade que, em nome de falso urbanismo, está sendo destruída lentamente. Para favorecer empreiteiros, proprietários de terras, empresas de loteamentos, imobiliárias, amigos do rei, derrubam-se paisagens, mata-se sebes, constroem-se pontes e rotatórias e avenidas pelas quais irão passar automóveis, caminhões, veículos que contam do individualismo de uma sociedade doente. E que contam, também, da falta de visão de governantes ultrapassados que enxergam apenas o agora, ou vantagens imediatas, sem darem um passo sequer em direção aos novos tempos. Quantos benefícios não se fariam se, em vez de pontes assassinas, se investisse em transporte coletivo, em educação ambiental, em civilidade para um povo que se aproxima da barbárie?

No fundo de mim, há uma dor quase infinita, mas me calo, pois sei que meu tempo se escoa e não irei ver as monstruosidades que gerarão novos monstros. Por isso, alimento-me como contador de histórias, como observador, como alguém que vai recolhendo, do fundo do baú, documentos, fotos, postais para entregas às futuras gerações que irão se lamentar do descuido, da indiferença e da apatia de nossos tempos. Guardo-os como relíquias preciosas. Para, diante de pontes assassinas, mostrar aos jovens que eu vi maravilhas maiores, que pertenci a uma cidade honrada, bela, decente e exemplar, essa que está sendo destruída pelo apetite inesgotável dos financistas e gulosos empreendedores, novo nome da especulação. Bom dia, ainda que amargo.

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