1.000 vezes Bom Dia

Confesso ter-me espantado ao começar a redigir esta croniqueta. Pois, no marcador de textos postados nesta coluna, lá estava: é, esta, a crônica de número 1007, com o título Bom Dia. Olhei mais atentamente e confirmava-se: a crônica número 1.000 fôra postada no dia 8 de junho, com o título “Pedigree e vira-lata”. Fica-me, então, uma estranha sensação de cansaço mas, também, a de um certo envaidecimento por não ter-me, ainda, rendido ao tempo. E a alegria de, aqui no jornal eletrônico, ter podido desejar bom dia aos eventuais leitores mais de mil vezes. Mil é número mágico.

Muitas pessoas já me perguntaram e, nos últimos meses, também eu me pergunto sobre o número de crônicas, de artigos, de comentários, de textos que escrevi ao longo destes meus 53 anos de jornalismo ainda vivido ativamente. Não sei, não consigo imaginar, acho até mesmo quase impossível recolher tudo o que se espalhou por aí. O “Bom Dia” irá completar, em julho, 45 anos de existência, contando-se apenas pequenos períodos de interrupção. Só com este título, quantas crônicas teriam sido escritas ao longo destas quase cinco décadas? E quantos assuntos abordados, mudanças de entendimento, perdas de crenças, novos sonhos e ideais?

Já contei, cá mesmo neste cantinho eletrônico, quando e como tudo começou. Foi numa noite fria, gelada, de 21 de julho de 1964, tempos confusos e perigosos do início do golpe militar. Nos meus jovens 24 anos, lá estava, eu, no comando daquele jornal inesquecível, a Folha de Piracicaba, que acolheu toda a juventude intelectual de nossa terra àqueles tempos. Formávamos um grupo de resistência à ditadura, a “Folha” era o centro nervoso da reação, onde se concentravam intelectuais, estudantes, sindicalistas, operários. O mundo caía sobre nós. Casado, então, há dois anos, ainda sem filhos, dei-me o direito ao mais alucinado quixotismo e, agora à distância, posso dizer que a verdadeiras loucuras suicidas.

O fato é que o mundo desabava sobre aquele jornal, sobre mim, ainda que fossem jovens os ombros que tentavam suportá-lo. Mas a carga era imensa, as crueldades inomináveis e surgira a face de uma realidade absurda, a da tirania, que não fora possível sequer imaginar. Se tudo se tornaria ainda mais terrível a partir do AI-5, em 1968, aquele 1964 era o vôo da serpente que começara a quebrar. E os sonhos dos anos dourados, onde estavam, para onde iam? E aquele mundo fantástico de liberdades, de alegrias, de redenções, onde ficara?

Não havia mais notícias amenas, nem acontecimentos inocentes. Cada dia era um pequeno inferno a ser enfrentado, com os horrores da insegurança, da violência, com a ameaça do “guarda da esquina” que, segundo Pedro Aleixo, é, nas ditaduras, mais pe do que o ditador. Piracicaba assistiu ao acerto de contas entre grupos, ao surgimento de mediocridades, a novas alianças que, mesmo sendo espúrias, detinham todos os poderes em suas mãos. E a lei deles, imposta: quem estiver contra nós é inimigo. Eu estava contra, o pessoal da Folha de Piracicaba estava contra. Fomos transformados em inimigos da torre de cristal. Foi um pesadelo, ainda que honroso.

O “Bom Dia” nasceu naquela noite fria de 21 de julho de 1964. Eu precisava de um cantinho meu, apenas meu, onde pudesse dialogar mais comigo mesmo do que com o leitor, um cantinho onde minha alma se recolhesse, desviando-se da fuzilaria e dos estrondos de canhões morais. Começou como meu confessionário, meu muro de lamentações, meu lugar de recolhimento, meu mosteiro espiritual, onde impedi se perdesse a alma. Acho que sobrevivi por ter um espaçozinho onde me rever, reencontro de cada dia, ainda que incomodando o leitor.

São 45 anos desejando bom dia a leitores, ao mundo, mesmo quando o coração se despadaçara. E, apenas aqui, são mil vezes bom dia. Isso tem um nome: Graça. Por essa bênçao, sou grato. E bom dia.

Deixe uma resposta