45 anos, uma vela acesa

É uma terça-feira, 21 de julho de 2009. Entardece. E, nunca, o recolhimento que me dei me pareceu tão confuso. Há um misto de paz e de sobressalto, alegria da caminhada e susto diante do mistério do tempo. Nesta terça-feira, completam-se 45 anos desde a primeira vez em que, numa noite amarga da ditadura – 21 de julho de 1964 – criei a secção Bom Dia, na “Folha de Piracicaba”, pequenina e heróica.

Sou acendedor de velas. Não sei para quem as acendo, mas acendo-as. Para Novalis, o pensador romântico místico, “na chama de uma candeia todas as forças da natureza estão vivas”. Como simbolismo, é verdade: o fogo, o ar, a cera, a mecha levam à reflexão e induzem ao mistério. Não há solidão sem vela acesa. Nem reflexões de um solitário. Acendo, pois, velas como se elas me unissem ou me conduzissem ao mistério que não conheço mas que sei existir. Nesta terça feira, acendi uma, desta vez na sensação de alegria e de susto. São 45 anos, com brevíssimos intervalos, que usei de lápis, de caneta, de máquina de escrever, de computador para escrever palavras, revelar sentimentos, conversar especialmente comigo mesmo, 45 anos de bom dia.

Foi isso que aconteceu, naquele já longínquo 1964, dos militares que chegaram ao poder, dos coturnos que substituíram sapatos do povo. A amargura e o terror eram indefiníveis e, no jornalismo, não havia nada a comemorar, mas a resistência aos ódios, às vinganças, a tirania especialmente dos coronéis de aldeia, como sempre acontece, ainda hoje também, nas cidades interioranas. Estávamos sob o terror. Resistir era preciso, mas as dificuldades eram como que insuperáveis. Inventei uma coluna intimista, despretensiosa, minha necessidade pessoal de higienizar a alma de tantas tensões e horrores, a forma com a qual comecei, ao final de cada noite e ao encerramento do jornal, desejar algo bom para o leitor. Era um bom dia, um sopro de esperança, um refúgio, um confessionário.

O Bom Dia passou por muitos lugares e espaços: pela Folha, pelo Diário, pelo Jornal, pela Tribuna, por Piracicaba, por São José dos Campos, por São Paulo, por Campinas. Não sei quantos foram, sei que nunca irei contabilizá-los, mas não é isso mais o que interessa. Para mim, é sinal vital de sobrevivência. São quase cinco décadas onde tudo aconteceu: militares chegaram e foram escorraçados; tiranetes paroquiais chegaram e desapareceram, como irão desaparecer; mentiras foram descobertas, verdades apareceram. Morreram líderes, quase não nasceu mais nenhum. Vi grandes homens e mulheres, mas vi, também, o surgimento, o nascimento e a vitória aparente e supérflua de muitos medíocres, alguns dos quais ainda sobrevivem mas em direção ao fim, enquanto outros apenas começam. O homem foi à Lua, voltou. Houve revoluções, golpes, guerras, outras guerras. Em cada dia, uma emoção, um estremecimento, a alegria e a tristeza, a dor, o bálsamo, a perda de esperanças e a retomada delas.

Alguém me disse, um dia, que fazer jornalismo é como anotar um rascunho da história, ir rabiscando-a a cada dia, sem conseguir prever o que virá, para onde irá, como será. Escrever, na verdade, é estar, permanentemente, em contato com o tempo, com o hoje que passa e se torna ontem e, ao mesmo tempo, que, passando, será amanhã. Escrevi sobre isso, escrevo há 53 anos, 45 deles, com breves intervalos, nesta coluna Bom Dia, que ultrapassou a marca das mil crônicas no jornal eletrônico.

É óbvio que isso me emociona. Mas, mais do que isso, completar 45 anos de uma coluna onde sempre me revelei por inteiro – nas expectativas e desesperanças, na tristeza e na alegria, na dor e no conforto – isso me faz a alma prostrar-se de joelhos, rendendo graças. A vela que acendi, hoje, é em ação de graças. Não sei a quem, mas sei que ao divino que paira sobre a humanidade, as coisas e as maravilhas do universo. Estar ainda escrevendo é um privilégio pelo qual agradeço a esse mysterium tremendum que não entendo e nem compreendo, mas ao qual me submeto. Bom dia.

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