70 anos de “…e o vento levou”

Pena que a palavra amador seja considerada, quase sempre, como referência a alguém inexperiente, não profissional. Mas, na verdade, amador é aquele que ama, também amante. Um cinéfilo, por exemplo, é amador de cinema, o que tem paixão pela obra cinematográfica. De minha parte, sou amador no sentido da inexperiência da crítica de cinema e amador como cinéfilo, como amante da que foi considerada a sétima arte.

Até hoje, não consigo me lembrar como consegui, nos 1960, ser assinante de “Les cahiers du cinéma”, verdadeira bíblia mundial do cinema, título que pertencia ao jornal “Le Monde”. Aguardar a chegada de”Les cahiers”, ler os comentários, as análises, as críticas era mergulhar num mundo onde a arte e a imaginação falavam mais verdadeiramente do que o real condicionado a tantos interesses em conflito. Cinema era cultura profunda, diferentemente dessa atual tecnologia alucinada que enfatiza efeitos especiais em vez do enredo, direção, interpretação, música.

Quando “Les cahiers du cinema” – acho que em 2008 – apresentou a lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos, a confusão foi mundial. Críticos de todo o mundo opinaram, ora aplaudindo ora protestando por ausências imperdoáveis na lista que aplaudia uma maioria de filmes europeus. E uma frustração: “…e o vento levou” não estava na lista. Como pudera acontecer tal omissão se o filme, desde o seu lançamento em 1939, causara comoção mundial, sucesso que se multiplicou ao longo dos anos, até mesmo quando completou, nesta semana, 70 anos de seu lançamento? Como esquecer as interpretações de Vivien Leigh, Clark Gable, compondo os insubstituíveis Rhett Butler e Scarlett O´Hara?

Ora, repito-me: sou apenas um amador de cinema, apaixonado desde a minha infância. E já revelei um dos meus segredos e pecados da meninice: querendo, desde pequenino, ser escritor, eu ia ao cinema para assistir a musicais e aprender a rima das canções: vida e querida, paixão e coração, amor e dor. Ficava na primeira fileira, com um caderninho na mão e, no escurinho do cinema, fazia minhas anotações. Rascunhei uma poesia para a namoradinha dos meus 10 anos em que pedi à Lua “que alumia o capim, que a Shirley gostasse de mim.” O cinema está para minha geração como o mar para os peixes. Aliás, um dos tesouros de minha biblioteca está num presente que Rocha Neto me fez: uma coleção da revista “Cena Muda”, com sinopses de filmes, fotos de atores e de atrizes, uma obra de arte.

Sendo, pois, amador na crítica cinematográfica, posso apenas dizer que, se “…e o vento levou” completou 70 anos de seu lançamento, eu assisti a esse filme acho que umas trinta vezes nos últimos 60 anos de minha vida. Ainda na terça-feira, vi-o novamente. E, sabendo da história, de cada fala, de cada cacoete, de cada paisagem, de cada cena, emocionei-me tanto quanto nas outras vezes, ainda mais encantado ao conseguir, com mais nitidez, ver o retrato vivo, real, rude da natureza humana, essa nossa capacidade espantosa de, ao mesmo tempo, esbarrarmos no divino e cairmos na mais profunda miséria de nossos limites, de ódios e rancores em conflito com amores.

O filme “…e o vento levou” pode não estar entre os 100 melhores filmes de todos os tempos, nem mesmo entre os 200, pois cada crítico tem seus referenciais e analisa por ângulos muitas vezes desconhecido. No entanto, não acredito haja outro – a não ser “Casablanca”, quem sabe? – que tenha provocado tantas emoções. Baseado no livro de Margareth Mitchell, o filme é a mais viva revelação de um tempo e um mundo que morriam nos Estados Unidos durante e após a Guerra Civil. Estranhamente, quando terminei de vê-lo novamente, a minha sensação – esquisita e doída, mas conformada – foi a de que o meu mundo, o mundo de minha geração – um mundo de cultura, de refinamento artístico, de buscas do belo – também terminou. “Tempus fugit”. E, da mesma forma, assim passa a glória do mundo, “sic transit gloria mundi”. Bom dia.

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