900 vezes bom dia

picture (58)Nem sequer me dera conta. Mas, ao postar a crônica de 22 de fevereiro, “Sem régua e compasso”, o registro da área de administração de A PROVÍNCIA indicava o número: 900. Confesso ter-me espantado, num misto de susto e de envaidecimento. Pois eram, aqui em A PROVÍNCIA, 900 crônicas, 900 vezes de textos em que, ao final, desejei Bom Dia ao leitor. Essa sucessão de dias após dias é assustadora. E, na verdade, não conseguimos ter ou viver a dimensão do tempo.

Em A PROVÍNCIA eletrônica, tudo começou como uma tentativa, de maneira simples, apenas experimental. Chamaram-me de visionário e, tivesse sido no sentido positivo da palavra, ter-me-ia sido honroso. Mas era pejorativo, algo soando como a louco, sonhador, sem visão de realidade. E a realidade já, há alguns bons anos, é clara demais para não ser sentida, observada, sentida: os tempos da comunicação eletrônica, o milagre da internet. A PROVÍNCIA enfrentou o desafio de maneira ousada e pioneira e está sobrevivendo, próxima dos 2 milhões de acessos. E a croniqueta Bom Dia começou também com fase eletrônica, quando ainda nem sequer contávamos o número de acessos.

São pois, 900 vezes bom dia, escritos no cotidiano. Mas a história da coluna é longa, longa demais, próxima de completar 45 anos desde o seu surgimento. Foi no dia 21 de julho de 1964. O jornal era a “Folha de Piracicaba”, que eu dirigia e de que me tornava proprietário. Lembro-me de como aconteceu, dos porquês. Na realidade, foi fuga, desesperada fuga. O golpe militar apanhara-nos a todos, indistintamente. E a cada um em sua história pessoal, nos planos de vida, sonhos, desejos. A “Folha” – de existência recente – caíra-me sobre os ombros, uma montanha para um moço então com apenas 24 anos carregar. E eu a carregava desde os meus 21 anos, num misto de quixotismo e teimosia consciente.

Era um jornal sem recursos, fundado por homens poderosos que, no entanto, não entendiam a própria aventura. O diretor da “Folha” afastara-se e o nosso saudoso e inesquecível Luiz Thomazzi – jornalista emérito na “Última Hora” paulista – assessorava os donos do jornal. Quem haveria de ser o novo diretor? Thomazzi apontou o dedo em minha direção: “Ele.” Não me lembro se a terra se me abriu sob os pés, se foram os céus que desabaram sobre mim. Era 1961.

Quando os coturnos militares atropelaram Jango, levando também as instituições civis – lá estava eu à frente da “Folha”. Ceifavam-se ilusões jovens, esmagara-se todo um projeto de vida. Interrogatórios, inquéritos, processos foram-se somando uns aos outros. À minha anterior militância comunista – sonho dourado de uma geração apaixonada – somavam-se artigos agressivos. E um deles, em especial, a que dei o título de “Marechal da Banda”, referência ao presidente militar, Castello Branco. Um saudoso e querido amigo – o Antônio Perecin – brigou comigo para eu alterar o título. Alterei-o. Para “O marechal da banda de lá.” Diante da justiça militar, foi o que me salvou.

O mundo caíra-me, sim, sobre a cabeça, com todos os mares e montanhas e pedreiras. Nuvens, então, se abriram e vi rasgos de céu azul: minha mulher estava grávida do primeiro filho. Patrícia iria nascer. Mas chegaria a uma terra marcada por ódios, a um país violado em sua estrutura jurídica, a uma pátria cabisbaixa. À alegria de ser pai, vinha, também, a angústia de um Brasil onde – contrariando o protesto do senador Moura Andrade – “a farda era toga”.

Não era possível fazer de conta a vida ser a mesma. Pois o sonho terminara. Aquele sonho. E o jornalismo desses anos era escola que nos forjava para usar a pena enfrentando a espada. A participação era intensa, sangüínea e, comigo, estava uma plêiade de moços inquietos, amantes da liberdade. Víamos as vísceras do monstro. Era impossível ignorar chagas e mazelas, o chão já molhado de suor e de lágrimas, antecipando o sangue que viria.

Era como um massacre na inteligência, nas forças, esperança e ideais violentados. Sobrara-me a alma. E eu não poderia deixá-la esvair-se num corpo intoxicado de realidades amargas. Precisei de um cantinho apenas para mim, um refúgio. Um espaço pequenino onde a alma vivesse o confessionário, o muro das lamentações, o poço das alegrias – onde, após o horror do cotidiano, o espírito pudesse respirar. Ou suspirar. E onde, então, eu fizesse de conta poder conversar com o leitor. No dia 21 de julho de 1964, nasceu esta coluna, o “Bom Dia”.

Há quarenta anos, quatro décadas. Parece ter sido ontem, mas foi há mil anos. Vivi – com alguns intervalos – cada um desses dias. E sobrevivi. Foi uma vida. Tem sido. E, aqui, em A PROVÍNCIA, nesse novo e fantástico universo virtual, tive a graça de poder, por 900 vezes, desejar bom dia. Hoje, pela 901ª vez, bom dia.

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