A camisa do homem feliz

picture (29)Na vida, uma das melhores coisas das que me aconteceram foi, penso eu, a decisão de pensar menos e sentir mais. Pois o povo sabe: “de tanto pensar, morreu um burro.” Eu tinha morrido e não sabia. Quando percebi, decidi pensar apenas para me ajudar a mais e melhormente sentir as coisas. A razão deve servir-me ao coração. Pelo menos, tento.

Recentemente, uma revista semanal voltou a insistir a respeito do tema felicidade: se existe, o que é, como é, essas coisas milenares. Minha tentação é de comportar-me como aqueles macaquinhos orientais: não falo, não vejo, não ouço. Dizem tratar-se de sabedoria mas, para mim, é simples conveniência de homem impaciente. Pois, inquieto, fico mudo, cego e surdo. Ora, estou lá, eu, em idade de discutir se existe ou não felicidade, se o ser humano pode ou não aspirar a ser feliz em plenitude? Isto é – entendo-o, agora, dessa maneira – conversa de bêbado em mesa de bar. Até os quarenta anos. Depois, é caduquice.

Era o que minha tribo discutia. Pode ou não o homem ser feliz por inteiro? E ser feliz no casamento, em família? Fala-se do humano como se fosse anjo. Ora, antigamente, estabelecia-se uma diferença, nem tão sutil, entre felicidade e bem-aventurança. Felicidade dizia respeito ao mundo, à carne, estados de satisfações em relação à vida mundana. E bem-aventurança, um ideal humano de satisfação, acima de situações e do próprio mundo. Era por aí. Hoje, com a internet, há a dúvida: o que é o real, o irreal, o virtual?

Fui tentado a contar a história do homem feliz, tão antiga que parece da carochinha, quem se lembra? O sábio ensinou, ao jovem, como encontrar a felicidade: bastava vestir a camisa de um homem feliz. E lá se foi moço procurar a camisa milagrosa. Camisas, havia muitas. Homem feliz, não o encontrava. Até que deparou com um que se dizia feliz, muito feliz. Mas que não tinha camisa para vestir. Fosse verdadeiro isso, a América Latina teria milhões de homens felizes, os descamisados dos políticos populistas.

Talvez, as antigas noções de felicidade e de bem-aventurança nos servissem para descomplicar a vida. A dificuldade é que, em alguns momentos, isso pode se confundir com loucura. Ou não passaria por louco quem, em pleno trânsito de um fim de tarde, cantasse o “Luar do Sertão”? Deve ter acontecido algo parecido comigo, pois me afastei e fiquei remoendo resmungos. Tiveram-me por maluco, pois demonstrei a serenidade de um homem feliz. E estava.

Foi o que tentei dizer: de pensar, morreu um burro. E reencarnou num homem que vai aprendendo a ser feliz na sua circunstância, nas situações, sentindo mais e raciocinando menos. Sou tentado a contar meu segredo: é fazer-de-conta. Ora, entendi que desejar pouco da vida é bobagem. Tem-se que desejar tudo, sabendo ser possível apenas alguns bocados. Faz-se, então, de conta que cada migalha é tudo. Então, cada momento de felicidade pode ter a dimensão de toda uma vida.

Quando se quer tudo, descobrem-se as maravilhas das coisas escondidas, pequeninas. E, então, felicidade e bem-aventurança como que se confundem. Certa vez, ouvi uma criança dizer de felicidade. A dela era estar com os pais, com os irmãos, brincar com os amiguinhos no quintal. E ter descoberto, no alto da janela, um ninho de passarinho.

Na verdade, convenci-me: é a bem-aventurança que plenifica o ser humano. E ela pode acontecer na contemplação do cotidiano. Talvez, o nome disso seja mais simples: paz. E paz é conseguir ver o mundo e as pessoas com olhos de concórdia e de esperança. Mas… Ora, isso se parece com a história do homem sem camisa. Bom dia.

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