A casa das minhocas

MinhocaViver vive-se vivendo. E, então, nunca se deixa de aprender coisas. Pelo menos, algumas. Na verdade, penso eu, é preciso desaprender muito para aprender pouco. Vai daí, ser permanente o deslumbramento, a descoberta de, realmente, cada dia ser um novo dia. Ora, quando pensei poder envolver-me com minhocas? E preocupar-me com elas? E deslumbrar-me com o que fazem?

No entanto, preciso, como sempre, de preâmbulos. Sou homem de crises. Saio de uma, entro em outra. Certa vez, um médico amigo disse ter-me diagnosticado o problema: que eu afogo com a vontade de viver, que sufoco, faminto insaciado. Pode ser. O fato é que, pouco antes de completar 40 anos — lá nos longínquos finais dos 1970 — vivi a crise da insatisfação plena. Dono de jornal, vida profissional sólida, bem casado, penca de filhos, senti-me prisioneiro da vida. E deixei de dormir. Literalmente. Mesmo sob o efeito de medicamentos fortes, com sedativos pesados, meu sono não ia além de duas ou três horas.

O Rio de Janeiro era, ainda e então, um dos principais centros culturais brasileiros, além de seu magnetismo sedutor. No Rio, eu conseguia espairecer. Por ordem médica, fomos, minha mulher e eu, em busca do relaxamento que já se me ia tornando de necessidade vital. Nos primeiros dias, o mesmo sonambulismo, digamos assim. Então, sem qualquer referência de crítica, resolvi assistir a uma peça teatral que se me tornou decisiva na vida: Arte Final. De Celso Queiroz Teles.

Foi-me como um soco no estômago. Era como se, no roteiro e no personagem, estivessem registrados a minha vida e o meu mundo enlouquecido. No personagem, eu me vi: estúpido, ambicioso, pretensioso, materialista, escravo do sistema e da engrenagem. Que idiotice era a que eu estava vivendo, que grande farsa? Que tolice, a minha, ser empresário se, na realidade, tenho dificuldades até para preencher corretamente uma folha de cheque? E se não entendo de lucros? Decidi: venderia meu jornal. E, então, tomada a decisão, dormi oito horas seguidas, longas e serenas.

Meus escritos eram assentados em ideologias confusas, em ideais de mundo desprovidos de alma. Meu artigo de despedida foi o confiteor de meu propósito: “Deixo de ser dono de jornal para ser jardineiro.” E lá me fui para o mundo em busca de construir o meu jardim. Que, para existir, precisava ser-me, primeiro, plantado dentro do coração.

Ora, o que é o Éden? Os hebreus já sabiam ser o jardim das delícias, o prazer, a própria delícia. A palavra jardim tem origem nesse ancestral lugar de iniciação dos mistérios. Para alguns, é Gan-dunu, e se situava na Babilônia. Judeus sabiam tratar-se do Gan-eden, entre rios generosos, entre eles o Tigre e o Eufrates. Do Gan-eden, ficou-nos o jardim, o garden, o giardino. O Islã diz que Alá é O Jardineiro. Visões de céus são de jardins. No Extremo Oriente, o jardim é o mundo em miniatura. Somos filhos do Éden, nostálgicos das delícias perdidas, o lugar onde lobo e cordeiro conviveram. Fui em busca do Éden, o paraíso perdido.Por que não construir o meu?

Confesso estar, ainda, plantando o meu jardim. E o do coração é mais difícil, mais complicado. Pois há feridas demais, como um horto pisoteado, espinhos, cacos de telhas abandonadas, restos de tudo, sobras do que não aconteceu, remorsos, tristezas, arrependimentos. As minhocas, porém, mostram-me a meridiana clareza de todas as coisas, a umbilical união do pretensioso ser humano com tudo o que existe. Entendi, enfim, que homem, o humano tem a mesma raiz de húmus, a terra. Deus moldou o homem a partir da argila do solo. O humano surge do húmus.

Comecei a entender ao ganhar, de minha mulher, uma casa de minhocas: “Jardineiro que se preze precisa disso.” São três caixas, como as de refrigerantes, superpostas, com porção de húmus e dezenas de minhocas, que se alojam na caixa do meio. Restos orgânicos, sobras — com algumas cautelas, mas incluindo papel picado — são colocados na casinha como alimento das minhocas. E, a pouco e pouco, do resto e das sobras, elas realizam o milagre da vida, da fertilização, da produção do húmus, do sopro divino, como se fossem gotículas do esperma dos deuses ou de óvulos de deusas.

Tornou-se-me uma doce loucura. Pela manhã, vou ver como estão as minhocas. Se chove, corro para impedir que seja inundada a casa delas. Antes de dormir, arejo aquele monte de sobras, de restos que permitem sejam, as minhocas, mais produtivas e mais dignas da vida do que multidões de pessoas.

Pois, na casa das minhocas, eu vejo: do lixo, elas geram o Éden. Homens transformam o Éden em lixo.

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