A casa do dr. Jacob

Jacob Diehl NetoJacob Diehl Neto – o Doutor Jacob – foi uma das mais notáveis personalidades piracicabanas, vida que, quando for contada, será uma rememoração da própria história de Piracicaba no século 20. A família Diehl deu, a esta terra, contribuições notáveis, uma verdadeira sementeira de gênios. E o dr. Jacob – secundado pelo irmão Júlio Diehl, professor emérito – foi um baluarte, um símbolo de resistência e de amor a Piracicaba. Sua cultura geral era de boquiabrir os mais ilustrados. E sua cultura jurídica o transformou em verdadeiro ícone da advocacia e do direito, advogado com cabedal de jurista.

Insisto, neste fim de jornada, em dizer dos privilégios que recebi dos deuses e dos céus, concedendo-me oportunidades de viver essa história já por tanto tempo e conhecer personalidades que a construíram. O dr. Jacob está entre os líderes de nossa notável novela, um lutador por Piracicaba, apaixonado pela terra e pela história, guerreiro e Quixote. Ele se recusava a sair daqui, até mesmo a viajar para outras cidades, o que aconteceu poucas vezes. Ele dizia: “Sou como o ribeirão Itapeva, que nasce e morre em Piracicaba.”

Conheci o dr. Jacob ainda na minha adolescência, deslumbrando-me com seus artigos poderosos e impecáveis, um estilo literário de causar inveja. E foi com ele, quando me formei em Direito, que aprendi as primeiras lições da advocacia. O dr. Jacob foi um dos criadores do jornal O Diário de Piracicaba, depois O Diário, do qual vim a ser proprietário e diretor. Era uma escola de lutas que precisávamos honrar e preservar. Em O Diário, o espírito do dr. Jacob parecia estar presente, estimulando-nos a lutar por Piracicaba e pelas liberdades, a protestar, a brigar, como ele fez por toda a vida.

Não sei se fui privilegiado ou se é uma dor que me acompanha. Mas fui, no dia de sua morte, o último interlocutor do dr. Jacob. Quase todos os dias, ele ia a O Diário. E, naquele sábado de manhã, lá estava ele, com sua admirável surdez, pois a cidade dizia que “o dr. Jacob é surdo por conveniência”, o que demonstra sabedoria. Falava-se que ele ouvia quando interessava, ensurdecia quando necessário. Naquela manhã, ele estava feliz e, por volta das 11 horas, se despediu, com o compromisso de almoçar com a nora e os netos, no Bairro Alto. E lá se foi ele, saindo do casarão da Rua Prudente. Então, a tragédia: ao chegar à Avenida Saldanha Marinho, com a Rua Alfredo Guedes, foi atropelado por um automóvel e morreu.

Uma das obras primas na ordem física, que o dr. Jacob nos deixou, foi a sua casa, na rua dr. Paulo de Moraes, em frente aos galpões da Estação Paulista. Nas muitas vezes em que o visitei em sua casa, eu ficava quase em silêncio, como se num templo de arte e de beleza, um refinamento artístico que nos comovia. Nunca saberemos explicar – os que o conhecemos e que íamos àquela casa de tantos saraus, de tantas tertúlias, de tantas conversas literárias, jurídicas e políticas – a sensação quase mística de estar na casa do dr. Jacob, com requintes e refinamentos, mas com a simplicidade do seu dono. Quando ele morreu, tivemos os mesmos receios, fizemos a mesma pergunta: ‘E a casa do dr. Jacob? Os herdeiros irão preservá-la?” O neto dele, o juiz Luiz Carlos Diehl Paolieri, nos assegurava ser compromisso pétreo dos seus descendentes. O Paolieri também se foi.

Nunca passei diante daquela casa sem me deter por alguns instantes para olhá-la, como que bebendo de sua beleza. Mas me assustei quando, há cerca de um ano, a vi transformada num restaurante, Macarronada Italiana. Apertou-me o coração e, ao passar por lá, minha reação era outra: evitava olhar, evitava ver, o medo de que os novos e alucinados tempos a tivessem transformado. Para quem fora vendida, quem eram os novos donos, teriam sensibilidade para avaliar o patrimônio artístico datado de 1920? Tive medo.

Na última quinta-feira, tomei a decisão e, com minha mulher, fui conhecer o novo restaurante. Na verdade, quis, medrosamente, ver a casa do dr. Jacob, os receios de encontrar morte onde houvera tanta vida e beleza. Não me lembro mais do prato que pedimos, pois fui tomado pela emoção e minha alma rejubilou-se ao ver tudo preservado, aquela obra prima cuidada com tanto esmero, a alegre certeza de que os novos proprietários sabiam que, mais do que uma propriedade, tinham adquirido um patrimônio cultural, artístico, arquitetônico. A casa do dr. Jacob está inteira, preservada pela sensibilidade da Família Giuliani, liderada pelo casal Antônio Carlos e Jenny, que a locaram a um restaurante com as exigências de preservação.

Telefonei aos Giuliani, cumprimentando-os e agradecendo. Em meu nome, em nome de minha geração e tenho certeza de que em nome, também, dos que ainda se rendem aos valores verdadeiramente piracicabanos, a essa nossa herança espiritual. Acho que, desta vez, o dr. Jacob, esteja onde estiver, deixou de brigar, feliz por ver a sua obra prima material preservada. Bom dia.

2 comentários

  1. Carlos Cesar Totti em 10/10/2021 às 10:33

    Apenas uma correção, Dr Jacob foi atropelado na Avenida Saldanha Marinho, com a Rua Alfredo Guedes. Eu morava a 30 metros da avenida, era criança mas é uma imagem que ficou gravada na minha memória!!

    • Patrícia Elias em 10/10/2021 às 12:44

      Olá, Carlos,
      Grata por sua visita ao site e, principalmente, por sua correção, contribuindo para aprimorar o conteúdo. O post já foi atualizado.
      Um abraço, Patrícia

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