A compaixão perdida

CompaixãoO capitalismo traz, dentro de si, o germe de sua própria destruição. Pouco difere de regimes totalitários, ainda que apregoe uma liberdade feita de máscaras. Nos últimos tempos, voltou-se a falar da “face humana do capitalismo”, o que apenas confirma a sua desumanidade. De um agir econômico, o capitalismo se transformou numa relação social que passou a caracterizar o Ocidente. Tão poderoso se tornou que criou um “espírito do capitalismo”, comportamentos, atitudes e até mesmo uma ética que se formou através do individualismo, no princípio aquisitivo e, portanto, no racionalismo econômico. Sendo individualista, o capitalismo rechaça o solidarismo. E, sem solidarismo, as sociedades caminham para a própria destruição.

Essas coisas estão nas ruas, tragicamente nas ruas. E, quando se fala em medo neste país, medo deveríamos ter diante do desfile cada vez mais crescente de homens e mulheres e moços e crianças desesperados, implorando pela caridade humana quando já não tem perspectiva de manter um mínimo de sua dignidade pessoal. Gente desesperada se mistura a malandros, a bandidos, a um legião de menores que já transformaram a esmola em fonte de renda. Aquilo, a esmola, que deveria ser um gesto de compaixão passou a ser um receio de se estar sendo enganado. Quem, realmente, está dizendo a verdade na humilhação de pedir? Quem, realmente, precisa e quem está mentindo?

Toda essa visão de mundo e essa perplexidade me passaram pela cabeça logo que, ainda agoniado, o moço se afastou, quase cambaleando pela calçada. Eu o vira aproximar-se tão logo saí do carro. Era um rapaz bem vestido, de aparência bonita, saudável, um moço humilde mas apresentável. Pediu desculpas por se aproximar, olhou para o carro, implorou: “Pelo amor de Deus, posso lavar seu carro?” Não entendi, quis saber onde, se eu quisesse, ele lavaria o automóvel. O rapaz não soube responder. E me disse que, se não fosse para lavá-lo, varreria a calçada, engraxaria meus sapatos. Sua voz ia-se tornando trêmula e, nos olhos, vi o brilho que antecede as lágrimas. Então, ele tirou do bolso a carteira de trabalho e uma receita médica: estava há seis meses desempregado e o primeiro filho – uma menina de alguns meses – precisava de um antibiótico caríssimo para ele, e não o conseguira pelo SUS. Era um homem que se sujeitava a qualquer humilhação para completar os 21 reais de que precisava. E que haveria de fazer – parecia claro em seu desespero – qualquer loucura para conseguir aquele remédio. Não falou, mas que outro seria o caminho, esgotadas todas as tentativas?

Com o pouco que pude lhe dar – trocados que carregava comigo – o rapaz saiu como que cambaleando, talvez com um pouquinho mais de uma esperança que de nada serviria senão para lhe renovar forças e sujeitar-se a novas humilhações. Pensei em meus filhos, quando pequenos. O que eu teria feito, vendo-me em situação semelhante à daquele homem? E pensei na última risada de políticos neoliberais, falando das maravilhas da economia globalizada.

É sempre mal negócio quando alguns ganham muito e muitos ganham nada. Aquele moço não ganhou nada, poucos ganharam muito em seu lugar. Por isso, cada dia mais compreendo porque o povo ama Lula, como se venerasse um salvador. Quando as elites perdem a capacidade da compaixão, tudo o que resta, para os humilhados, é a esperança. Em alguém, em alguma coisa, mesmo que indefinida. Para não enlouquecer. Bom dia.

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