A gambá, filhotes e bombeiros

GambáO primeiro a chamar-me a atenção para a sabedoria dos provérbios populares foi João Chiarini, o inesquecível. Eu era ainda adolescente e João, amicíssimo de meu pai, freqüentava a nossa casa, onde se deliciava com os quibes e quitutes de minha mãe. Eram tão prazerosos e tão aberta aos amigos a casa de meus pais, que era para lá e para comer aquelas delícias que João Chiarini levava seus amigos artistas e intelectuais que visitavam a cidade. Assim foi que, ainda criança, vi aquela casa ir-se transformando num espaço de artes e cultura, apesar de sua simplicidade. Cresci, pois, ao som de música e ao deslumbramento da pintura, ouvindo Leandro Guerrini declamar versos, acompanhado da saudosa Jaçanã, sua companheira. E foi lá que ganhei um autógrafo do imenso Procópio Ferreira, que, para entusiasmar o garoto embevecido, declamou o monólogo “Deus lhe pague”, quase inteiro.

Minha alma foi bordada naquela casa, com aquelas pessoas, um mundo absolutamente diferente do materialismo desesperado que solapou famílias, cidades, países. Com João Chiarini – cuja farta correspondência eu ajudava a selecionar, ainda nos meus 13, 14 anos – descobri a sabedoria do povo. Os provérbios populares falavam tudo. E Chiarini tinha uma obra em gestação que ele não chegou a concluir: a pesquisa dos escritos em banheiros públicos, palavrões e obscenidades, algo como coprologia, já não me lembro. O fato é que anotávamos o que líamos em sanitários públicos, bobagens sem fim, e entregávamos ao Chiarini. Ainda hoje, nos meus guardados, tenho, com a letra dele, alguns desses ditos e obscenidades dos banheiros de antigamente.

Paro por aqui, antes que a emoção e as lembranças me dominem. Pois o que eu queria dizer é apenas que João Chiarini foi o primeiro a me alertar para a profunda sabedoria do povo, para a filosofia das traseiras de caminhões. Então, aprendi que é sabedoria “fazer-se, do limão, limonada”. Ou que “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.” E que “o tempo ensina”, “a vida é a melhor escola”, “se estiver achando ruim por comer banana, olhe para trás que alguém estará comendo a casca.” A filosofia dos acadêmicos não passa sequer perto da sabedoria do povo. Assim é que, vendo a devastação que se promove oficialmente na cidade – árvores, sebes, áreas verdes derrubadas para alimentar a voracidade de empreiteiras – passei a olhar o lado positivo disso, do qual me vejo como um dos principais beneficiários. Pois, expulsos de seus habitats, aves, animaizinhos silvestres começaram a buscar guarida em meu jardim. E me vejo no paraíso.

Já sou íntimo, pois, de sagüis, de tucanos, de maritacas, de raposinhas, de gambás, de quatis, de gatos vagabundos, além de uma variedade sem fim de pássaros que encantam e enternecem. Nem sei diferir uns de outros, mas deslumbro-me com eles todos, misturando-se às plantas, às árvores, aos arbustos. Deixo-lhes água e alimento, minha empregada cuida mais deles do que da casa e sou premiado com um microcosmo que me aumenta a nostalgia do paraíso. Até minha velha tartaruga reapareceu, depois de tanto tempo de ausência. Acho que, agora, querendo fazer parte dessa história natural.

Mas sou um tolo, sem praticidade alguma. Olho, contemplo, quando muito teorizo. Mas não sei o que fazer com eles. Montei um minhocário, a compostagem cria a riqueza do húmus reprodutor. Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. E assim lá se me vão os dias, aprendendo mais com bichinhos do que com gente, exceção aos sábios que se me esparramam pelas estantes da biblioteca. Sinto-me privilegiado, tendo trocado a espada pela pena, a ação pela contemplação. No entanto, vejo-me diante de novas dificuldades. Pois não é que ouvi um grito da empregada que, abrindo o minhocário, se assustou: “Tem bicho aí dentro, tem bicho!” Tinha. Uma gambá, sei lá como conseguiu entrar, pariu filhotes dentro do minhocário e ela e os gambazinhos não tinham como sair. Como fazer?

Tolo que sou, voltei a procurar o tal Pelotão Ambiental que, até hoje, não sei para o que existe, pelo menos dada a sua inutilidade diante de providências que já lhes pedi: a poluição sonora, a sujeira em ruas e calçadas. Sempre que os acionei, tive, como resposta, a inoperância, quando não a má vontade e a incompetência. E isso desde os tempos de José Machado. Pois bem. Telefonei para que me ajudassem a ajudar a gambá e os gambazinhos. O atendente não sabia, de início, o que era minhocário. Expliquei do que se tratava. E ele me informou que gambá não fazia mal a ninguém. Concordei, mas lhe pedi que me ajudasse a ajudar a mãe gambá com seus filhotes. Ele respondeu que não tinha recursos, nem mesmo luvas para esse tipo de trabalho. Sugeri, então, que ele conversasse com o João Chaddad ou com o Barjas pedindo que um dos dois tirasse algum dinheiro das pontes, das rotatórias, das avenidas que servem poderosos, para dar sentido a um Pelotão Ambiental. Pelo menos, para diminuir o vexame.

Foi burrice minha, sabedor das farsas que existem. E burrice maior porque eu me esquecera de uma instituição que é um dos orgulhos nacionais, talvez a mais querida de todas elas: o Corpo de Bombeiros. E foi o que aconteceu: em menos de dez minutos, a viatura, com dois moços educadíssimos, estava no meu jardim, numa operação de salvamento da gambá e seus filhotes. Os bombeiros tratavam dos bichinhos com tal delicadeza que nos emocionamos. E, felizes por serem generosos, levaram dona gambá e seus filhinhos para um lugar onde pudessem formar família e viver em paz. Pensei em outro ditado popular: “Deus dá asas a quem não sabe voar”, obviamente me referindo ao Pelotão Ambiental. E outro: “ninguém engana a todos todo o tempo.” E assim seja. Bom dia.

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