A gota de mel e o barril de vinagre

MelCerta vez fui seduzido. Absolutamente seduzido. E pode parecer por tão pouco: um sorriso, um leve tapinha no meu peito. E duas palavras: “Perdoa, vá?”

O sedutor era, ainda, rapazola. Recém-formado, primeiras atividades, pediu-nos fazer estágio conosco. Talentoso, comunicativo, logo se fez simpático a todos, olhar transparente, confiável. Não hesitava, diante de dificuldades, em atravessar a madrugada, como os antigos jornalistas, homens da noite. E nenhuma tarefa o atemorizava. Dizia querer aprender. E aprendia.

Foi rápido o processo de aproximação, de quase amizade. E o fato de ser muito jovem fazia com que lhe relevássemos arroubos e entusiasmos hormonais. Na verdade, ele era cada um de nós ontem. Não fomos, no entanto, maldosos para lhe dizer que ele seria nós amanhã. O fato é que passou a ser como filho de cada um, dos mais velhos. Acho que – de tão velhos – agimos como avós, protegendo-o com naturalidade. O moço sorria, sempre sorria. E não percebemos ser-lhe, o sorriso, a grande arma.

Um dia, apareceu esbaforido, olhos assustados. A história, contou-a como drama: a avó, morando em cidade próxima, caíra ao descer a escada, precisava de socorro, não havia quem a ajudasse, ele estava sem condução. Ora, não havia tempo para hesitar, dei-lhe as chaves do carro, pedi-lhe me telefonasse, pensei em telefonar a clínicas de amigos solicitando ambulância. O rapaz quase me beijou, saiu correndo, ouvi o ranger dos pneus. E fiquei sofrendo pela pobre avozinha dele, tão desamparada e frágil.

Passaram-se algumas horas. E, então, o telefone tocou. Apressei-me a atender. Era a mãe do rapaz. Dei-me conta, de imediato, que eu sequer sabia que ele tinha mãe, muito menos quem era ela. Fiz-me ainda mais prestativo, sinceramente preocupado: “Ele já socorreu a avozinha dele? Ela é sua mãe, feriu-se com gravidade?” Do outro lado da linha, a mulher não entendia do que eu lhe dizia. Primeiro, porque a mãe morrera há muitos anos. Porque o filho não lhe dava notícias desde a noite anterior – por onde ele andava? Portanto, o desgraçado não tinha avó alguma. E, se a avó não existia, obviamente ela não poderia ter caído da escada.

Tudo era mais simples e óbvio. O rapaz vivia uma alucinada paixão na cidade vizinha, passara a noite com a moça, quis voltar a vê-la e tê-la. E lá se foi ele, com meu carro, com minhas bênçãos e preocupações. Jurei haveria de matá-lo, tão logo voltasse. Até imaginei como fazê-lo: com a tranca de uma porta, que eu tenho, ainda, uma porta com tranca. E vi-me com a tranca na mão, o moço entrando, aquele olhar de santinho do pau oco. Do pau oco, o santinho era o rapaz que me enganou, que foi amar a moça com o meu carro, às minhas custas, que quase matou de novo a avó já morta, desgraçado.

Não deu tempo de apanhar a tranca. Quase ao anoitecer, ele apareceu, entrou em minha sala, o maldito sorriso lindo, os olhos ainda mais brilhantes. E eu sabia porque lhe brilhavam tanto os olhos. E minha raiva aumentou, a vontade de matá-lo vendo-o aproximar-se, ainda aquele sorriso, o rosto juvenil que parecia o de um neto meu, minhas lembranças de juventude, quando eu saía com o carro de meu pai para namorar no mato… E, então, ele chegou pertinho, estendeu os braços, sorriu ainda mais, deu-me um tapinha no peito, fez menção de me abraçar, percebi que, se eu permitisse, ele me beijaria. E falou: “perdoa, vá?”

Lembrei-me da sabedoria de um bispo amigo. Num dia de fúria jornalística, em pleno regime militar, eu extrapolara nas críticas, na dureza das palavras. O santo homem entrou em minha sala, na redação do jornal, sentou-se, falou-me: “Meu filho. Não seja tão ácido em suas críticas, tente fazê-las com firmeza mas com doçura.” E completou: “Uma gota de mel colhe mais moscas do que um barril de vinagre.”

“Perdoa, vá?” Não resisti e cedi ao sorriso do garoto. Ele me seduzira. Sua malandragem fora doce demais para eu querer matá-lo com a tranca. E, sem perceber, repeti o que – acho eu – falei mil vezes a meus filhos: “Tudo bem. Perdôo. Mas é a última vez, falô?” O menino sem avó comprometeu-se: “Falô”

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