A graciosidade perdida

picture (5)Admito ter sido daqueles antigos “moços de fino trato”, daí não gostar da palavra “traseiro”. Éramos mais elegantes e palavrão, mesmo sendo ótimo, tinha requinte se falado em francês. Fernando Henrique sabe, Lula deveria aprender: é mais gentil falar–se em “derrière”. Portanto, ficarei com meu “derrière” grudado na cadeira de minha biblioteca, nos bancos de meu jardim – um mundo melhor do que esse outro que se entristece a cada dia que passa. Esses tempos são “le mot de Cambronne”, acho melhor explicar-me.

Hoje, até freira de mosteiro fala, com naturalidade, a palavra merda. Jornais escrevem-na, rádio e televisão divulgam-na. Mas ser antigo está na moda, basta ver-se a valorização de antiquários, museus, múmias, dinossauros. Mesmo para nós, antigos, a merda já existia, quase tudo era merda. Gente, porém, de “fino trato”, dizíamos ser “a palavra de Cambronne”, general francês do exército napoleônico. Ele – recusando-se a se render aos ingleses – passou à história por mandar o inimigo “à la merde”. O general sumiu, a palavra ficou. Mas até “la merde” gloriosa perdeu a graça, vulgarizada, com exceção no teatro, quando e onde “merde” é saudação.

Não há confundir-se elegância com ranço. Palavras são uma riqueza apenas humana. Nada existe sem o verbo que lhe dê vida. E elas mudam, alteram-se, transformam-se. Vejam puta, a palavra. Eu invejava Sartre, o título admirável e preciso de sua peça teatral, “La putain respectueuse”. No Brasil, a tradução empobreceu a obra: “A prostituta respeitosa”. Ora, prostituta é uma pessoa; puta é outra. Nos tempos “de fino trato”, prostituta era figura bíblica e putas – imagine a maldade! – mulheres “de vida fácil”, mulheres “de vida airada”. Meu sonho era escrever a palavra puta com toda a beleza, a sensualidade que tem. Mas era feio. Agora, perdeu a graça.

Aliás, é a própria vida que perde a graça. Como caipiracicabano, vejo-me acuado, ameaçado. Pois, por aqui, algumas palavras têm significado próprio. Puta, ainda e por exemplo. A palavra tem o sentido, também, de tamanho, de qualidade, de beleza, de admiração, de amargura. No frio, é “puta frio”. No calor, “puta calor”. A bela mulher é “puta muié bunita”. Ou, mais graciosamente: “puta dium cavalão de muié”. E as moçoilas em flor – coisa mais linda, mais cheia de graça – cada qual é, com nosso refinamento linguístico, “puta diuma potranca no ponto”. Há elogio mais doce?

Se o mundo dos outros perde a graça, tento, ainda, conservar o meu. Há algum tempo, ao lado de pescadores, vi garças pousando nas pedras do rio. Quando elas voltam, é anúncio do redespertar da natureza, de vida que se renova. De um toca discos de amigo, ouvíamos – quem poderia imaginar? – Schuman e Rachmaninov ao sabor de cuscuz, aves bailando ao som de pianos mágicos. Então, o Hélio levantou-se, sumiu por instantes, retornou com uma flor nas mãos. E, à moça bonita que estava à mesa, falou com inspiração de bardo: “Essa rosa vermeia é pra mecê, lazarenta de muié bunita como eu nunca vi.”

A moça, eu sei, nunca recebeu tão sincero e comovedor galanteio. Querem acabar com esse meu mundo. Mas eu resisto. Bom dia.

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