A ilha e a ponte

Ilha e a ponteSobre Piracicaba pesa uma maldição sobre a qual já me manifestei e que me recuso a novamente abordar. É maldição que acompanha alguém e através de quem e da qual se espalha, contamina, contagia, alquebra. E, por isso, tem acontecido aquela profecia milenar: “os inocentes pagarão pelos pecadores.” A inocência do povo diante de infâmias cometidas por outros está sendo atingida. O profano, ainda outra vez, pisoteando o sagrado, provoca conseqüências imprevisíveis.

Ao longo da história, a humanidade viveu delírios coletivos e ainda os vive. Seria fastidioso relembrar de alguns que culminaram em verdadeiras tragédias universais, nacionalismos irracionais, ideologias fanatizantes, religiões hipnotizadoras, quase o mesmo que ocorre, agora, em apenas novos contextos. Quando o profano se sobrepõe ao sagrado, lugares e pessoas se transformam coletivamente, ensandecidas, sabendo-se que o mundo, em todos os tempos, enlouqueceu aos bandos, enquanto a lucidez, após as loucuras, apenas foi recobrada lentamente e um a um, individualmente.

O endoidecimento pela riqueza rápida e devastadora, pelo exibicionismo, pela ganância desmedida, pela fome e sede de poder que cegam e alucinam passou a ser parte de nosso cotidiano e basta estar nas ruas para presenciar a tragédia do dia-a-dia. Pior ainda: perdeu-se a sensibilidade, perderam-se referenciais, foi levada de roldão a mínima lembrança de dignidade, civismo, decência e sentido histórico da vida. Restam pequenos, pequeníssimos grupos que sofrem diante da deterioração não mais e apenas de valores, mas de raízes, de princípios.

Não é desenvolvimento o que acontece em Piracicaba, mas uma febre de ter, de possuir, de ganhar, de aproveitar, sem medir conseqüências, sem esbarrar em qualquer limite. Uma ponte, uma rotatória, uma avenida, mil condomínios, isso tem valido mais do que tudo, sepultando e matando o que for obstáculo, seja histórico, cívico, cultural, artístico, enfim, tudo o que for en frentamento humanístico. A prioridade são os veículos, mas não os coletivos, pois o povo não importa. Afinal de contas, o que é o povo, senão a massa amorfa mobilizada apenas em ano eleitoral?

Recuso-me a discutir política, a fazer jornalismo político, a sofrer e a me angustiar por desmandos administrativos. Este meu tempo passou e tenho que prosseguir a caminhada com outra missão. Mas meu coração humano, de cidadão e de piracicabano especialmente, se confrange e toda a indignação brota, quando vejo o silêncio, a indiferença e a apatia diante de crimes que se cometem sem advertências, sem reações, sem punições. Essa segunda ponte que se constrói sobre o rio Piracicaba – ao lado da histórica e sempre reformada Ponte Velha, Nova Ponte, Ponte Rebouças – perde toda e qualquer significação quando se vê o crime ambiental, sentimental e histórico que se comete: a ponte está ocultando, matando, escondendo a Ilha dos Amores, a primeira, acima do Salto, onde nossos antepassados namoravam, onde mulheres humildes lavavam roupa nas pedras, onde se faziam piqueniques e cuja beleza encantava os olhos de quem a visse.

Uma obra de arquitetura sempre será menor se ela ofuscar, matar, esconder, ocultar a obra maior, a da natureza. O sonho dourado de administradores antigos, que tinham preocupações maiores com a cidade e com a comunidade e não consigo próprios, foi o de construir, naquela Ilha dos Amores, uma obra de engenharia que, superando e enfrentando enchentes, fosse um lugar bucólico para as famílias observarem o rio, com segurança, algum conforto, uma lanchonete ou algo que o valha, com barquinhos indo da margem esquerda até a ilha. Não conseguiram fazê-lo por, à época, terem-lhes faltado recursos tecnológicos. Hoje, estes existem. Mas serviram para matar a ilha e a paisagem. Essa ponte é fruto daquela maldição a que me referi ao início desta croniqueta. Cada obra de vulto está impregnada desta maldição e, por isso, a cidade, pensando estar desenvolvendo-se, está sendo envenenada pelo ódio, pelo ranço, pela ambição, pelo desrespeito e pelo crime maior: o assassínio do sagrado pelo profano. A maldição é pior por vir das mais altas esferas. O grande absorve o menor. O povo sabe que desgraça pouca é bobagem. E que uma acompanha a outra. Quanto mais violentamos o sagrado, mais ele responde. Como dizem os franceses: “violentai a natureza e ela volta a galope.”

Por enquanto, inocentes pagam por pecadores. Mas não há mal que sempre dure. O problema é que, mesmo quando passa, o mal deixa marcas insanáveis. Bom dia.

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