A lingua própria do mistério

picture (22)Há uns quatro, cinco anos, o Cerinha – enquanto comíamos cuscuz na Rua do Porto – me perguntou se eu sabia que já se celebrava, em São Paulo, missa em latim. Recomeçou numa igreja pequenina. Naquele dia, diante de nossos olhos, o rio corria belo e vigoroso. Um menino nadava dentro de uma bóia. Num bote, dois moços lançavam os anzóis, as linhas esticadas. Uma garça parecia acompanhar tudo em sua imobilidade olímpica.

“Introibo ad altare Dei…” –falou meu amigo. Enrolei a frase, respondi: “Qui laetificat juventute meam…” Rimos. Ele olhou em direção à garça, falou da beleza do rio. Lembrei-me de Felisberto Monteiro – ecólogo antes do tempo – para quem o Piracicaba é um rio tão sem vergonha que, à primeira chuva, ressuscita e esplende em beleza. “Dominus vobiscum….” – falou meu amigo. E respondi: “Et cum spiritu tuo.”

Ele me perguntou se eu entendia o que o padre, nas missas de nossa adolescência, dizia durante a missa. Estranhamente, admiti compreender tudo, mas sem entender nada daquele latinório. Era como as velhinhas que respondiam, que compreendiam, ajoelhadas, contritas, maravilhadas diante de todo o sagrado que se revela em língua própria. Latim era a língua do mistério. E, para quase todo o povo, a verdadeira língua de Deus. Logo, Deus falava em latim. Quando falou em português, o mistério perdeu a graça.

“Ainda hoje, sinto o cheiro de incenso e de velas acesas. Era bom e tenho saudade.” – continuou meu amigo, nossos olhos postos no rio, não sei mais se olhando-o, se indo-se pelo tempo. Lembrei-me de Frei Liberato, da majestade dele, quando, no momento da consagração, parecia encarnar o próprio Deus: “Agnus Dei qui tolis pecata mundi!” Frei Liberato parecia aquele Moisés de Michelângelo, as luzes saindo-lhe da testa como chifres iluminados. Chifres são símbolos sagrados, de excelência e de poder, ao contrário da vulgaridade em que os tempos os transformaram.

A missa passou a ser celebrada na língua de cada povo. Padres tiraram as batinas e as freiras deixaram seus hábitos, o sagrado se tornou “Jesus Cristo Superstar”. O Senhor se tornou você. Os pais quiseram se tornar amigos. A voz foi substituída pela imagem. A música, pelo ruído. Orquestras, por bandas. Cantos, por uivos.

A imprensa ainda dá destaque à celebração, em uma igreja paulistana, da missa em latim. Em Piracicaba, despertou grande interesse a liturgia da missa ortodoxa, não sei se ainda celebrada. Há nostalgia no ar. E, quando não mais se tem para onde ir, retorna-se para onde havia segurança. A Unesco revela que 95% da população mundial acreditam em um deus. Confirma-se, pois, a fome humana pelo sagrado, a busca do infinito na vida tão finita. A transcendência e imanência encontram-se.

Há algum tempo, uma senhora – intitulando-se “sacerdotisa do candomblé” – queixou-se de discriminação. Quem o fez não apenas revelou preconceito, mas profundo mau-gosto, falta de senso estético. Pois o candomblé tem um dos mais vívidos rituais religiosos. É misterioso. E se o latim era língua do mistério, o candomblé mantém o segredo com a sonoridade das línguas bantas.

As estranhas línguas do sagrado – o árabe do islamismo; o hebraico do judaísmo; o latim do catolicismo antigo; o banto do candomblé – chegam, talvez, mais facilmente aos corações do que a linguagem cotidiana. De tão usado para conflitos, o vocabulário do dia a dia não transmite paz. O mistério tem língua própria. Mesmo que se não entenda, ouve-se no coração. Bom dia.

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