A loucura das armas

picture.aspx Desde a bomba atômica, armas me angustiam. Odeio-as. Depois de Hiroshima, o mundo parou ao anúncio da bomba sobre Nagazaki. Era a tragédia anunciada. Nunca mais esqueci: foi em 1945, 8 de agosto, e eu mal acabara de completar cinco anos. Quase à frente da minha casa, na rua São José, ficava o principal cinema da cidade, o Broadway. E, naquele anoitecer, não entendi pessoas indo serenamente ao cinema quando se aguardava o fim do mundo. Tive medo do horror, da bomba, da morte brutal, do assassínio. E fui apresentado, pela primeira vez, à estupidez humana.

Armas dizem-me, pois, de tragédias. Meninos morrem por, querendo “brincar de dar tiros”, usam revólveres dos adultos. Com exceção de arco e flecha, tacape, bodurna, estilingue, bodoque, armas deveriam ser proibidas. Povos ditos primitivos, prefiro-os com suas armas precárias a civilizados com suas armas sofisticadas. Havia mais decência em duelos entre cavalheiros, em guerras campais, do que nas guerras civis das cidades. Armar-se porque bandidos usam armas é, de certa forma, o mesmo raciocínio que tenta justificar a desonestidade do cidadão por haver governantes desonestos.

Odeio armas. Pois, insisto: elas me lembram tragédias. Na infância, um ladrão entrou na casa de um amiguinho meu. Na madrugada e ouvindo barulho, o pai do menino tomou do revólver, saiu pelo corredor que levava ao quintal. No mesmo momento, a mãe de meu amiguinho, preocupada, foi em direção ao quarto das crianças. No escuro, o homem viu o vulto, pensou fosse o ladrão, atirou. Atingiu a mulher no coração. Ela morreu. A família destruiu-se. E, na distante década de 1950, já se discutia a absurdidade de as pessoas terem armas em casa.

Nos dias do golpe militar de 1964, eu dirigia uma redação de jovens jornalistas de esquerda. Nas cidades interioranas, incluindo Piracicaba, 1964 foi o ano de vinganças paroquiais. O guarda da esquina era mais poderoso do que os generais. E mais cruel. Havia ameaças declaradas, outras apenas veladas. Era uma redação pequenina, apesar da riqueza de tantos sonhos. Um inesquecível amigo, João Vendemiatti, muito mais velho do que eu, prevendo agressões que enfrentaríamos, procurou-me na redação. Tirou, da pasta, um revólver, deu-mo: “Você precisa se defender.” Ele levou-me ao fundo do quintal, encostou uma tábua na parede, quis ensinar-me a atirar, a apertar o gatilho. Apertei. Tal foi meu susto que levei o revólver para junto do rosto, querendo ver por onde o tiro saíra. O homem tirou-me a arma: “O revólver é mais perigoso para você do que os inimigos.” Foi o meu único tiro de verdade, pois todos os outros foram de mentirinha, nos quintais da infância, imitando o Zorro.

Até estilingues me dão náusea. Pois eu também fui Tarzan. E, uma tarde, vi o passarinho ciscando sob a jaboticabeira. Mirei o bichinho, atirei: atingi-lhe o peito. Vi o sangue escorrer, pedi socorro: “Mãe, acuda, matei um passarinho.” Solucei e nunca me esqueci do sangue derramado. Nem da cova cristã que fiz à minha vítima: uma caixa de sapato, enterrada num canteiro de flores e uma cruz de gravetos. Eu, assassino. Por isso, odeio armas. E tenho pena de quem gosta delas. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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