A moça da bicicleta

Ao telefone, ela se identificou como professora universitária, em finalização de tese de doutorado. Pedia-me a recebesse para obter algumas informações. Combinamos o encontro e, alguns dias depois, ela apareceu. Fui avisado de que ela chegara. Mas, ao ir à varanda, não vi outro automóvel que não o meu. Então, sorridente, ela surgiu de trás de uns arbustos. Moça bonita, elegante, percebia-se que refinada. “Foi difícil encontrar o lugar? Você veio de ônibus?” – perguntei. “Que nada! E foi mais fácil, pois vim de bicicleta.” – respondeu.

Só então percebi a bicicleta presa a uma árvores e a moça vestida como ciclista, apenas sem o capacete. “De bicicleta?” – insisti. Pois, de minha casa à ESALQ – onde ela estuda – são cerca de dez quilômetros. Ela sorriu e me explicou que trocou moto e carro por bicicleta. E que saiu ganhando. “É uma loucura circular por aí nesse mar de automóveis, as motos enfurecidas, sem lugar para estacionar e com estacionamentos caríssimos. De bicicleta, escolho o ritmo, o caminho, não gasto nada. E cuido do corpo.” Um corpinho de adolescente, aliás.

Apenas quem não tiver olhos de ver ainda não percebeu o retorno crescente de ciclistas pelas cidades. Não mais apenas como esportistas ou por diversão, mas usando bicicletas como veículos de transporte pessoal. Até recentemente, eram os mais pobrezinhos e humildes que as usavam como condução, alternativa num país onde o transporte público é uma obscenidade. São homens e mulheres, moços e maduros, que decidiram, por si mesmos, por soluções pessoais à falta de políticas sérias de mobilidade urbana. Desconfio de que – a continuar a proliferação de automóveis – estaremos, mais rapidamente do que imaginamos, de volta ao “tempo das diligências”. Na minha antigamente bela terra – antes tão cheia de flores, cheia de encanto – já vi casais, em fins de semana, passeando de charrete. E mostravam-se mais felizes e orgulhosos do que os neurastênicos motoristas de carrões.

Quando os governos não fazem, o povo encontra soluções. Se melhores ou piores, essa seria outra discussão. Mas a sabedoria popular carrega lições de vida que, desgraçadamente, abandonamos como inútil. Ou tola. No entanto, é essa sabedoria que – antes dos pensadores, dos políticos, dos governantes – se vai impondo em tempos de crises causadas por transições. Técnicas estão na ordem do fazer, das habilidades; tecnologia, na do saber, do conhecimento. Mas elas se embricaram a partir de quando o empirismo recuou em proveito dos modelos matemáticos levando-nos à tecnociência. Em cada época de evolução tecnológica, surgem verdadeiras revoluções sociais. E morais. Pois são mundos que acabam para o surgimento de outros.

Ora, parece-me tolice das grandes ficarmos lamentando o atual “fim do mundo”. Pois, como as pessoas, os mundos também acabam. É uma espiral, que sobe e desce. Ou um círculo cujo ponto inicial se encontra com o final. Tudo muda e as pessoas também. O problema é saber se mudanças levam a um estado melhor ou pior. Hoje, como negar as fantásticas conquistas científicas, em todas as áreas? Como negar os benefícios que nos trazem e os horizontes que se escancaram? Dizer que vivemos um caos social, que há problemas, que se perderam valores – isso tudo é uma realidade, mas o processo ainda não terminou. É como se, após a explosão da grande bomba, a poeira e a fumaça ainda estivessem no ar, impedindo-nos uma visão mais clara do que aconteceu.

De minha parte, aos 72 anos, já vi mundos nascerem, mudarem,morrerem e voltarem a nascer. Vejo-o de novo. Andei descalço pelas ruas, em carrinhos de rolemã, de patinete, de bicicleta, a cavalo, de charrete e de carroça, até de carroção de boi. E – entre assustado e maravilhado – vi aquela madrugada inesquecível da chegada do homem à Lua. Vejo, desde a II Guerra Mundial, o mundo transformando-se, hostil, guerreiro, novas técnicas de morte. Quando ganhei a minha primeira máquina de escrever, pensei fosse um milagre. Hoje, navego pela internet. Negar o que existe não é inteligente. Mas é fundamental estar atento para que não se destruam princípios e valores que formaram a nossa civilização.

A moça da bicicleta me levou a pensar no eterno retorno. Não a mundos que acabaram. Mas a humanismos que ainda sobreviveram. Enquanto os carrões estavam parados no trânsito, sem lugar para estacionar, sem vagas em estacionamento, a professora pedalava – lépida e feliz – em busca de seu destino. Quando humanizarmos técnicas e tecnologias, poderemos voltar a andar a pé pelas ruas. Então, seremos mais racionais.

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