A morte de uma escola

picture (62)Com o computador, jornais e revistas praticamente aboliram a figura importantíssima e fundamental dos revisores. Agora, há, nos programas de computação, o “revisor gráfico”, que aponta riscos verdes e vermelhos quanto a erros. Logo, que os próprios jornalistas e redatores revisem seus textos a partir dos recursos do computador. Começa-se, pois, a matar os jornais como “escola literária”, o mais precioso espaço, universalmente, para forjar estilos e aprimorar a arte de escrever.

Desde o seu surgimento, foi, a imprensa, o berço de grandes mestres da literatura mundial, iniciando-se, alguns deles, como revisores. E, até recentemente, os maiores jornais brasileiros contratavam professores, literatos e homens de grande saber para serem seus revisores. Nos textos, errar era como cometer um crime. Ou pecar.

Sentia-se honrado o jovem que conseguisse ser “auxiliar de revisor” num jornal. Aconteceu comigo na adolescência. Auxiliar o revisor era a possibilidade de aprender, de aprimorar o pouco que se sabia. Como um cão de guarda, o revisor policiava tudo, corrigia, sugeria mudanças. E, no dia seguinte, era ele o responsável por erros que, tornados públicos, matavam de vergonha o redator, o chefe de redação, o dono do jornal.

Nos jornais, não existia o “errar é humano”. Errar era absolutamente imperdoável. Nas coleções de jornais antigos, encontram-se discussões memoráveis entre jornalista e intelectuais por um simples pronome mal colocado. A pontuação defeituosa, a concordância errada provocavam reações imediatas, furibundas, humilhantes. É um monumento à língua portuguesa – desconhecido das novas gerações – a polêmica entre dois gigantes, Ruy Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro, quanto ao texto do projeto do primeiro Código Civil republicano. Na “Réplica” de Ruy, na “Tréplica” de Carneiro, disseca-se a língua portuguesa. Por um advérbio, erigiram-se edifícios de lógica, de erudição, de cultura.

E a maldita crase? E o hífen, também maldito? Dizia-se que “a crase não nasceu para humilhar ninguém.” Mas sempre humilhou. Como o hífen que, pelo menos para mim, é trauma insuperável, fantasma permanente. Pois, ao contrário do que alguns pensam, escrever é tarefa árdua. Resulta – além de vocação e talento, de dom – de estudos permanentes, leituras sem fim, informações, atualizações, pesquisa, aperfeiçoamentos. As redações de jornais faziam parte dessa escola. E os revisores, alguns dos mestres. E continuarão necessários até mesmo com a próxima reforma ortográfica.

Ora, se escrever exige muita leitura anterior, o que ocorrerá se se abolir a literatura das escolas? Um dos argumentos usados é de uma singeleza dolorosa: os jovens não gostam de ler, não lêem mais. Mas por que, então, uma das mais vicejantes indústrias, em todo o mundo, é a livreira? Se se publicam trabalhos medíocres, há o outro lado: livros notáveis, reedições de clássicos e obras anunciadoras de novos talentos chegam de maneira alentadora às livrarias.

Preparemo-nos para a cada vez mais ampla mediocrização dos textos. Ninguém é revisor de si próprio. E ninguém escreve sem muita leitura. Pelo andar da carruagem, haverá, em breve, quem proponha, por desnecessários, a abolição dos cursos de letras, como já se fizera, antes, com o de filosofia. O computador mudou o mundo, muda vidas, mas não cria. Sem o homem, é apenas máquina. Bom dia.

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